sábado, 29 de outubro de 2011

Entrevista publicada na Revista do Tribunal Regional Federal da 1a Região-no.8,Ano 23,AGOSTO/2011


1-) A VIOLÊNCIA URBANA É CONSEQUÊNCIA DAS DESIGUALDADES SOCIAIS?
Resposta: Violência no meio urbano engloba um conjunto vastíssimo de fenômenos, cuja variedade e complexidade impedem qualquer remissão unívoca a uma causa única ou a um simples conjunto de causas. Por outro lado, a própria ideia de "consequência", que traz embutida a noção complementar de causa, dificilmente se aplica a fenômenos sociais, para cuja realização concorrem os sujeitos humanos, dotados, em algum nível, de liberdade. Não há agência humana se o sujeito for destituído inteiramente de liberdade e reduzido a mero mediador de determinações, condicionantes ou causalidades. Finalmente, desigualdades são muitas e muito distintas entre si, sendo também múltiplos e diferentes seus respectivos papéis e efeitos. Por outro lado, dependendo do tipo de violência e da modalidade de desigualdade, pode haver, sim, conexões. Determinadas desigualdades podem favorecer a emergência de certas práticas violentas, mas apenas em certos contextos culturais e históricos, e não como regra geral.


2-) É POSSÍVEL ATRIBUIR O CRESCIMENTO DA AUDÁCIA DOS CRIMINOSOS DOS GRANDES CENTROS URBANOS À CERTEZA DA IMPUNIDADE?
Resposta: Em alguns casos, creio que sim. Por exemplo: lavagem de dinheiro e corrupção de empresários e políticos; crime organizado (aquele que envolve em redes clandestinas agentes públicos vinculados a práticas criminosas); as máfias policiais do Rio de Janeiro, conhecidas como milícias; as execuções extra-judiciais, tipo criminal em que as polícias fluminenses são recordistas mundiais. Todos esses crimes têm crescido e elevado seu nível de audácia, provavelmente, em parte por conta das taxas de impunidade. Enquanto dispara a taxa de encarceramento dos réus pobres, envolvidos em práticas focalizadas pelas políticas de segurança predominantes, os criminosos de colarinho branco ou protegidos por laços institucionais prestigiosos permanecem impunes. Como se vê, a desigualdade no acesso à Justiça é reproduzida pela dinâmica que responsabiliza desigualmente os agentes das distintas formas de criminalidade.


3-) O QUE EXPLICA O FATO DE CRIMES BÁRBAROS ESTAREM SENDO PRATICADOS POR ADOLESCENTES DENTRO DAS ESCOLAS? O QUE O SENHOR ENTENDE QUE PODE SER FEITO DENTRO DAS ESCOLAS PARA QUE  ESSA REALIDADE SE TRANSFORME? SERIAM O ESTÍMULO À LEITURA, AOS ESPORTES E À PREPARAÇÃO PARA O MERCADO DE TRABALHO PARTES DA SOLUÇÃO PARA O PROBLEMA?
Resposta: O problema é grave e de natureza multidimensional, isto é, inscreve-se em processos, simultaneamente, sociais, culturais, morais, familiares, afetivos e institucionais. Um dos fatores chave é a ausência do afeto familiar, que é a outra face da moeda da autoridade familiar, cujo papel integrador valoriza as crianças e os adolescentes e os leva a internalizar valores e limites. Essa ausência ainda se associa a dificuldades da própria escola em se constituir como referência valorizada e dotada de autoridade. Além de tudo, dá-se, muitas vezes, a incomunicabilidade entre linguagens culturais e a depreciação de jovens social e psicologicamente vulneráveis. Esses são alguns dos fatores relevantes que apontam para a necessidade de políticas inter-setoriais dirigidas à valorização das famílias e dos jovens vulneráveis, seja porque esse é o dever do Estado e o direito dos grupos vulneráveis, seja porque esse esforço previne violência nas escolas. As escolas têm muito a fazer, abrindo-se à interlocução com as comunidades e as famílias, convocando-as a assumir responsabilidades, atribuindo protagonismo aos jovens, abrindo-se às suas linguagens, valorizando-os e investindo na disseminação da cultura da paz. 


4-) SERIAM OS BAIXOS SALÁRIOS DAS POLÍCIAS CIVIL E MILITAR CAUSA DETERMINANTE DA CORRUPÇÃO PRATICADA DENTRO DAS CORPORAÇÕES?
Resposta: Se baixos salários determinassem corrupção, a maioria da sociedade brasileira seria corrupta. Isso não acontece. Um raciocínio determinista desse tipo desmerece não só os profissionais de polícia, mas todo ser humano, cujas escolhas morais desaparecem, convertendo-se em epifenômenos ou reflexos de determinações materiais. É claro que, no caso daqueles indivíduos dispostos moralmente adotar práticas corruptas, o péssimo salário estimula a pior decisão, do ponto de vista moral. Sobretudo quando se combinam condições salariais baixíssimas, reduzida valorização profissional, péssimos exemplos superiores e elevadas taxas de impunidade. Um bom contra-exemplo é o das unidades policiais em que se paga o mesmo salário, mas onde o orgulho profissional (contrapartida da valorização institucional) obsta qualquer imoralidade do tipo financeiro. Foi o caso do BOPE, do Rio de Janeiro, durante muitos anos, pelo menos enquanto teve um pequeno contingente --não tenho como avaliar o que ocorreu depois de sua expansão. A unidade era reconhecidamente brutal, do ponto de vista do uso da força, frequentemente transgredindo limites legais e violando os direitos humanos, mas não havia casos de corrupção. Pelo contrário, os raros que houve suscitaram reações duríssimas do próprio grupo. Inclusive, "justiçamentos", que equivalem à aplicação (ilegal) de sentença de morte (inexistente). Por isso, costumo dizer que, aleem da formação moral dos indivíduos, o maior obstáculo à corrupção policial --mais eficiente do que controles internos e externos-- é o orgulho de pertencer a um grupo coeso, a uma unidade institucional valorizada, dotada de identidade associada a valores refratários à corrupção.


5-) O COMBATE ÀS DROGAS TEM EFEITOS SOBRE A SEGURANÇA PÚBLICA?

Claro que sim. Entretanto, avalio que esses resultados têm sido fortemente negativos para a segurança pública. Quando se pensa a problemática ampla, variada e complexa das drogas ilícitas sob o ângulo do "combate", converte-se em matéria de polícia e de justiça criminal um conjunto de questões que se inscrevem no campo da saúde e da cultura, no sentido antropológico do termo. Penalizar, criminalizar, tratar como objeto de ação policial matéria afeta ao consumo de substâncias psicoativas constitui um sintoma dos limites de nossa racionalidade política. Essa reação social e política, intelectual e simbólica, moral e psicológica, nada tem a ver com exame objetivo e racional de resultados e avaliação de alternativas, visando metas desejáveis. Vejamos: se a intenção é diminuir o consumo das substâncias classificadas, em nosso período histórico, como ilícitas, a opção pela via do "combate", isto é, pela via policial e da justiça criminal, é ineficiente. Pior, produz efeitos perversos, não antecipados, não desejados, concorrendo para o agravamento do quadro que se queria resolver e gerando, em paralelo, situações extremamente negativas e indesejáveis para todos. Em poucas palavras: o caminho da "guerra às drogas", do "combate" e da criminalização não logrou reduzir o consumo, nem reduziu os efeitos deletérios do consumo e ainda provocou insegurança pública, ampliou a degradação das polícias, expandiu as taxas de encarceramento de pequenos traficantes não-violentos, sem acesso a armas, condenando-os a seguir carreiras criminosas e os impelindo a adotar posturas violentas, a médio prazo. Ou seja, o caminho da criminalização e do "combate" tem sido um desastre completo.
            O cúmulo da insensatez do caminho adotado está bem representado pela comparação entre a maconha e o álcool --para não falar no tabaco. O álcool é de longe a droga mais destrutiva, cujos efeitos têm sido os mais devastadores (temos mais de 15 milhões de alcoólatras no Brasil--, entretanto, sabiamente, ninguém em sã consciência propõe a criminalização do usuário do álcool ou a proibição do álcool, porque há bom senso suficiente para reconhecermos que a melhor forma de lidar com o alcoolismo não é prendendo vendedores e consumidores. Se fizéssemos isso, aumentaríamos o problema e criaríamos outros, ainda piores. No entanto, somente agora, no começo da segunda década do século XXI, o Brasil começa a considerar a sério o fim do proibicionismo relativo à maconha. Quando preconceitos substituem a análise racional das matérias públicas, os resultados costumam nos punir a todos.
            Por fim, mas não menos importante: não concordo que se possa considerar constitucional uma legislação que viole a liberdade individual, se e enquanto o exercício de tal liberdade não viola a liberdade alheia.


6-) OS BENEFÍCIOS SOCIAIS  INSTITUÍDOS PELO GOVERNO (PARA DESEMPREGADOS, PARA RECLUSOS, PARA DOENTES, DENTRE OUTROS)  TRAZEM MELHORIA PARA A QUALIDADE DE VIDA DE SEUS DESTINATÁRIOS OU SE CONFIGURAM UM ESTÍMULO AO COMODISMO PARA ESTAS PESSOAS?
Resposta: Quando decisões governamentais, pela mediação do BNDES ou por outros meios, atropela a competição entre empresas, abole o risco (intrínseco ao mercado) e beneficia algum setor econômico, garantindo retornos, por certo provoca acomodações, desestimula a concorrência e, portanto, o impulso à evolução da produtividade, e gera assimetrias e injustiças. Em síntese, com frequência, a distribuição assimétrica de benefícios esvazia o dinamismo do capitalismo brasileiro, mantendo-o submisso ao manto paternalista do velho patrimonialista. Nem sempre é o caso, mas isso ocorre muitas vezes. E quando ocorre, o estatismo deixa de ser sinônimo de proteção de direitos e indução racional de um desenvolvimento sustentável e virtuoso, justo e democrático. No fim, todos perdem, menos os destinatários das prebendas. Nas camadas mais vulneráveis da população, entre os mais pobres, a psicologia social é outra, o impacto do protecionismo estatista é outro: quem conhece de perto o significado da pobreza absoluta, da miséria, da indigência, sabe que, naquele universo, carência não é fonte de impulso para a criatividade, o protagonismo, a produtividade, o empreendedorismo, o investimento no trabalho. Naquele universo, carência é abismo que devora energias físicas e psíquicas. Carência é sinônimo de desespero, desamparo, inviabilização de si mesmo como sujeito e como força de trabalho. Carência é ausência de perspectivas e expectativas transformadoras. Carência é matriz da reproducão ampliada de si mesma. Pessoalmente, considero que a mera ponderação a respeito da legitimidade ou conveniência da ação estatal nessa área beira a infâmia moral e, a meu juízo, atesta profunda ignorância da sociologia da miséria. Isso, entretanto, nada tem a ver com a necessidade de que se passe da primeira para a segunda geração dos programas de combate à miséria, de modo a que, além do suporte básico, se ofereça treinamento, formação e oportunidade de trabalho digno, para que a situação original seja inteiramente revertida.


7-) MUITOS DESSES BENEFÍCIOS, NA VERDADE, NÃO CARACTERIZARIAM UMA FORMA DE POPULISMO, NO MELHOR ESTILO DA POLÍTICA DO “PÃO E CIRCO”?
Resposta: No andar de cima, quer dizer, para grupos empresariais ou financeiros privilegiados com benesses paternalistas que obstam a livre competição, sim, ainda que a categoria qualificadora deixe de ser, nesse caso, "populismo", e passe a ser "neo-patrimonialismo". E ainda que a expressão "pão e circo" pudesse ceder lugar a seu equivalente, na esfera da elite: "caviar e champanhe".


8-) EM FACE DA DESPROPORÇÃO ENTRE O VALOR FIXADO PARA O SALÁRIO MÍNIMO E AQUELE FIXADO PARA O AUXÍLIO-RECLUSÃO (QUE PODE CHEGAR AO VALOR DE R$ 862,11, DEPENDENDO DO VALOR DO SALÁRIO DE CONTRIBUIÇÃO), NÃO SE EVIDENCIA UM DESESTÍMULO PARA O CIDADÃO HONESTO, JÁ QUE O PRESIDIÁRIO TEM ASSEGURADO O DIREITO DE SUSTENTO À FAMÍLIA?
Resposta: Se um "cidadão honesto" colocar em dúvida sua adesão à honestidade por meio de um cálculo relativo a ganhos e perdas, derivados do fato de estar livre ou cativo, evidentemente, não é honesto, o cidadão. Esse personagem nada terá de honesto. Manter-se-á agindo em conformidade com os preceitos da honestidade apenas se e enquanto tal linha de conduta lhe oferecer ganhos superiores àqueles que obteria adotando linha de conduta criminosa (isto é, suscetível de sanção penal). Portanto, a ponderação não faz sentido. Seu enunciado instaura uma contradição em seus próprios termos.
            Quanto ao referido auxílio, ele visa evitar que a prisão seja, além de uma tragédia pessoal e familiar, uma fonte de pressão no sentido da degradação de outras trajetórias sociais, cujo destino poderia vir a ampliar o problema que a prisão pretende reduzir.

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Depois de Depois do Filme


           

É a terceira vez que escrevo sobre espetáculos de Aderbal Freire Filho. Escrevi sobre O Púcaro Búlgaro, Moby Dick e, agora, compartilho com os leitores algumas impressões sobre Depois do Filme. Como, em matéria de produção acadêmica, teatro, cinema e literatura, só escrevo sobre o que admiro, me dá prazer e me encanta, a sequência constitui, em si mesma, modesta homenagem pessoal: expressa o reconhecimento da qualidade e a reverência pela obra de Aderbal. Por falar em admiração e apreço, cito meu saudoso mestre e amigo, Richard Rorty, que dizia mais ou menos assim: “Não gostou? Faça diferente.”
            Aliás, confesso uma pequena perversão: gosto de gostar e de admirar obras e autores. Admito que custei a me resignar e aceitar que se trata de um desvio de personalidade –fruto de algum trauma remoto. No começo, supunha natural. Ora, gostar do que é bom por que seria mau? Divertir-se, encantar-se, maravilhar-se com a inteligência e a sensibilidade alheias --sintetizadas em obras dos mais variados gêneros, acadêmicas ou estéticas-- e depois estender o deslumbramento em textos e conversas, compartilhando-o: por que seria imoral ou patológico? Por que atestaria inferioridade intelectual e fraqueza do juízo crítico? Não compreendia.
Na verdade, ainda não compreendo, por mais que leia e ouça os que se orgulham da própria (suposta) superioridade quando identificam vícios e defeitos. Parecem extrair prazer da humilhação que promovem com a aspereza de seu veneno crítico. Por mais que observe o gozo meio hierático dos que se comprazem em imitar o Deus do primeiro Testamento, expulsando obras e autores do paraíso, ainda não assimilei suas motivações.
Entretanto, é tamanha a desproporção entre os dois grupos humanos, a favor dos que menosprezam minha fraqueza, que recuei e me convenci de que meu caso é mesmo meio estranho, certamente minoritário, e talvez requeira cuidados. Contudo, nem por isso deixei de professar minha inclinação doentia, porque para este mal não parece haver cura fácil. E o impulso é mais forte que a prudência e o pudor.
Portanto, mais uma vez escrevo sob o efeito do encantamento.
            E ouso afirmar: mais uma vez Aderbal surpreende. Na linha das experiências anteriores com os “Romances em Cena”, o diretor, agora também autor e ator, encena um monólogo que talvez melhor se definisse como um meta-monólogo ou uma história contada, uma narrativa dramatizada em várias vozes por um ator solitário, uma recordação em voz alta, uma evocação compartilhada, um roteiro declamado (o roteiro-em-cena), ou um convite à imaginação coletiva, ordenada e dirigida por um maestro hipnótico. Prefiro a seguinte descrição do evento teatral montado no teatro Poeirinha, no Rio de Janeiro, cuja temporada se esgota no próximo dia 23 de outubro: exercício de imaginação coletiva, conduzida por um maestro hipnótico, virtuose das artes da palavra, do diálogo, da construção de personagens, do movimento e da evocação cênica.
            Os verbos apropriados para dialogar com Depois do Filme são estes: insinuar, sugerir, suscitar, propor e evocar. Nada no espetáculo é ostensivo ou reinvidica a objetividade que derivaria da autoridade de um autor demiúrgico. As cenas não provêm de um sujeito intangível, fora de cena, situado no centro de todas as coisas narradas, e cuja voz fosse a terceira pessoa ausente porém fundadora, fonte do sentido e da verdade como um deus-ex-machina. Não há um narrador-observador neutro. Tampouco a narrativa empurra o espectador para a posição na qual se iluda com a impressão de que vê os fatos narrados nas cenas com neutralidade ou com a sensação de que os fenômenos transcorrem à sua frente sem mediações, sem vetos e filtros, sem interpretação subjetiva e viés, sem véus ou máscaras.
Os fenômenos –acontecimentos, encontros e desencontros, palavras ditas e sinais emitidos, silêncios e pausas, corpos em marcha, gestos em deslocamento-- não estão ali, diante do espectador, revelando-se, transparentes. São imaginados. Imaginados coletivamente, o que é extraordinário e, em vez de empobrecer a experiência teatral, a intensifica. Curiosa e talvez paradoxalmente, por não transcorrerem diante de nós, espectadores, as cenas se inflam com um sopro poderoso, que lhes confere uma carga vital inusitada. A verossimilhança, transferida ao tribunal das consciências individuais, submetida ao rigor de seus protocolos e ao crivo de sua fantasia, alcança uma potência rara. 
            Como se percebe, comecei pelo negativo: dizendo o que, a meu juízo, o espetáculo não é e não faz. Nisso, creio ser fiel à dramaturgia sobre a qual me debruço. Ela também começa por ser negativa antes de plantar suas colunas e erguer a plataforma de sua linguagem afirmativa. Negativa ao desconstituir expectativas e gramáticas convencionais que codificam a sensibilidade e as disposições comunicacionais dos espectadores, tais como costumamos ser, na rotina cultural do ocidente urbano e contemporâneo. Negativa ao propor o jogo teatral do modo como se espera encontrá-lo e desfrutá-lo, para logo surpreender e precipitar o espectador em uma aventura sem bússola do sentido e dos sentidos. As trilhas que não estão inscritas em mapas são fascinantes, porque misteriosas, mas inquietantes e até amedrontadoras, porque ignoradas.
            O monólogo faz parte da gramática teatral. Se há apenas um ator em cena, antecipa-se, deduz-se o monólogo. Quando, entretanto, o discurso frustra a forma insinuada, assumindo a estrutura de enunciados breves, ordenados como um roteiro de cinema (“Exterior, dia, etc...”), cria-se um intervalo, uma fissura ou um lapso entre o método implicitamente anunciado --ou projetado pela expectativa da audiência-- e o recurso narrativo posto em circulação pelo roteiro falado.
Uma característica fundamental e, de novo, surpreendente deste roteiro falado é a presença explícita das descrições e das instruções usualmente postadas na margem e dirigidas ao corpo técnico do filme para uso nos bastidores, não em cena aberta[1]. Trata-se de um making off, então? É a hipótese natural que decorre da primeira decepção, isto é, da expectativa frustrada de ouvir um monólogo. Mas por que um roteiro de cinema, se estamos em um teatro, diante de um palco?, indagam-se os espectadores. Traduzido para o teatro, o making off teria como equivalente um ensaio. Seria o caso?
Outro corte: não se trata de ensaio, nem de meta-teatro, mas de “vida”, “vida real”. As aspas aqui não são mero adereço de cena. A vida real se realiza sob a forma de fantasia compartilhada, via pinceladas magistrais do contador de histórias que incarna personagens: três mulheres e um homem.
Os laços são representados pela ponte, o celular e o automóvel.
Um homem no vão central da ponte prepara o suicídio, enquanto conversa com um amigo, ao celular. Um homem que envelhece e já não vê adiante tempo suficiente para as metamorfoses que talvez o salvassem da grande frustração. Um homem a quem falta coragem para matar-se, assim como lhe faltara coragem para viver, e que busca amealhar os restos de vitalidade para concluir o ato interrompido. O relato acompanhará sua jornada noite adentro, dia adentro, treva adentro, labirinto adentro, aos tropeços, entre encontros frustrados, até o despenhadeiro e a redescoberta, no fim, de que o mar do Leme pode remeter a um novo horizonte, a um possível reinício.
O desenlace dá-se quando o primeiro e único encontro com um personagem masculino face a face o salva do desastre, literal e metaforicamente, pela mediação de uma mulher, ao acaso, atravessando a babel das culturas e das línguas, perfurando a opacidade espessa que opõe rigorosa resistência à comunicação.

A transitividade como método e o cinema

            Propus uma descrição do que acontece em Depois do Filme: exercício de imaginação coletiva, conduzida por um maestro hipnótico, virtuose das artes da palavra, do diálogo, da construção de personagens, do movimento e da evocação cênica. Explico: Aderbal anuncia cada cena como se lesse as notas técnicas de um roteiro cinematográfico, indicando, eventualmente, até mesmo a posição da câmera. Câmera que não existe assim como inexistem os personagens e suas interações, tanto quanto não estão lá os cenários mencionados. Só estamos presentes os espectadores e o ator. A voz que se ouve é a sua, emitida diante de nós. Os únicos instrumentos cênicos são a iluminação, a trilha sonora intermitente e alguma cadeiras dispersas no palco e fixadas na parede lateral, horizontalmente, como uma instalação de Marcel Duchamps.
            Antes que o ator tome posse da arena, veem-se cenas do filme Juventude, de Domingos de Oliveira, com o diretor, Paulo José e Aderbal representando três amigos que se reúnem na serra, num fim de semana, em torno dos afetos, da memória e do envelhecer. O personagem de Aderbal chama-se Ulisses. Sua filha, Paloma, está doente. O tratamento é caro. Ele é médico mas não pode curar a filha. Precisa de um empréstimo pesado do amigo rico, que resiste.
            As cenas projetadas são substituídas pela ação in loco de Aderbal, que adota o nome do personagem cinematográfico e o flagra tempos depois. Depois do filme. Assim como testemunhamos o ator, diante de nós, depois do filme, no tempo presente do teatro. Na imediaticidade da copresenca. Na urgência da comunhão de tempo e espaço. Na contiguidade material dos corpos.
As cenas são evocadas por um apelo à imaginação coletiva. E somos lançados em uma aventura sem paralelo: a imaginação coletiva é um esforço individual, entretanto vivido no mesmo momento e sob a mesma batuta, o que gera uma atmosfera perturbadora e eletrizante, porque a suposição comum da intimidade com o outro é explorada até o extremo da saturação, até o limite da simbiose, embora não se possa realizar, muito menos verificar, tratando-se, cada mergulho pessoal no imaginário, de uma experiência incomensurável e intransferível, a mais singular entre as vivências humanas.
Olhamos os espectadores nas cadeiras à nossa frente, virados de frente para nós, posto que estamos em uma arena, e supomos ver juntos o que não se vê, sentir juntos o que só existe no fundo de nossa fantasia mais pessoal.
A conversão no outro, a sobreposição simbiótica, a incarnação do espírito alheio saboreia-se no mesmo movimento em que se intui a solidão mais vertiginosa e irreversível.
Tudo isso é bem diferente da emoção usual proporcionada pelo mistério do teatro. Quando um monólogo é declamado, está ali o ator ou a atriz que o declama. Ela ou ele nos convida a compartilhar emoções e situações que descreve, mas entre a atriz e cada espectador as fronteiras não se diluem, como tampouco se neutraliza a distância entre os espectadores. Por mais que a imersão em um mesmo fluxo de sentimentos e imagens nos aproxime, as individualidades permanecem relativamente estabilizadas.
Tudo o que foi dito sobre Depois do Filme também se distingue do teatro com diálogos e cenas interativas. Cada personagem é uma comprovação da verossimilhança do outro, o qual atesta, por sua vez, a existência significativa do outro ao reconhecê-lo como interlocutor. A verossimilhança ergue-se como um balão inflado pelo sopro conjunto de fantasmas cuja realidade é dada pelo outro, numa regressão especular e espectral ao infinito. O outro de cada fanatsma não é mais que o clamor de uma pretensão análoga à existência significativa, isto é, à existência para o espectador. Espelhos contra espelhos, em profusão, em procissão, virados uns para os outros, a divertir-nos, a contagiar-nos com a fantasia que compartilham.
Sem o suporte do outro ator, amparando o espectro de outro fantasma-personagem, como poderia o primeiro adquirir o status de dramaturgicamente real, crível, funcional e comovente?
Sem a rede vaporosa de fantasias erguidas umas sobre os ombros das outras, como poderíamos ver, enxergar, sentir e reconhecer as situações, os objetos, os cenários, as dinâmicas dramáticas, as coisas que habitam o mundo ficional montado sobre o palco?
Pois podemos, sim. Aderbal o demonstrou. Mesmo na falta de outros. Inclusive na ausência do modelo tradicional do monólogo. Ainda assim, apenas com a evocação de personagens e circunstâncias, a realidade dramatúrgica emerge e sustenta-se, comovendo e nos marcando com seus açoites, seus afagos, seus remédios.
Evocação corresponde a uma determinada metodologia performática ou a certa modalidade de construção de personagem. O ator que recebe a entidade-personagem como um cavalo em transe, e o cerebral, que esgrime o personagem com distanciamento crítico, dependem, ambos, de uma ordem cênica de outro tipo. No caso do roteiro-em-cena, proposto por Aderbal, o que marca o trabalho do ator é a transitividade entre as posições do relator da cena (o meta-ator, ou o narrador, ou o coro de um só homem) e do personagem que a vive, que a explora por dentro. Contudo, os limites entre dentro e fora são precários e as transformações, sutis.
Some-se a esse repertório de ingredientes, um aspecto delicadíssimo e tão óbvio e simples quanto refratário à percepção imediata: o roteiro proclamado antes das cenas, como molduras a circunscrevê-las e conectá-las, não é teatral, mas cinematográfico. Por isso refere-se à câmera. Se a referência fosse o teatro, veríamos (com o sexto sentido da imaginação) o teatro anunciado. Tratar-se-ia da crônica de um teatro anunciado e enunciado. Uma variante do meta-teatro. Não. Há um degrau para tropeçarmos. Há ainda um grau sutil mas decisivo a afastar-nos, mais uma vez, da realidade descrita pelas palavras pronunciadas. O que se anuncia é cinema, o que se vê é a fantasia evocada pelo gesto teatral. A tal ponto é importante esta volta do parafuso dramatúrgico que, quando nos abandonamos à realidade --despojada porém sólida-- finalmente atingida do teatro, ela se furta e nos é negada. Deparamo-nos com a irrealidade do que suscitava em nós, espectadores, a impressão do fim da espiral imaginária. É ainda outra a realidade. A realidade é outra, diferente, portanto, do que conhecemos e esperamos, controlamos e palmilhamos. Ou outra porque sempre fora do lugar em que a procuramos. O efeito inquietante provoca a vertigem, simultaneamente da razão e da sensibilidade. Como também nós somos objeto de nosso escrutínio, também sobre nós recai o feitiço da des-realização, porque tampouco nós, enquanto objetos da auto-reflexão, estaremos onde nos procurarmos. Por isso, assim como os alvos da inquirição, também nós, sujeitos, estamos fora de lugar. E é esta nossa condição. O que, por certo, relativiza os próprios dilemas da verossimilhança dramática e da imaginação coletiva evocados pelo xamã hipnótico.
O filme que antecede a cena teatral volta a impor-se como plataforma da experiência narrativa e horizonte das fantasias coletivas. Mas o filme já não está onde o vimos e dele apenas herdamos os vestígios, tanto quanto deles sua linguagem se alimentara. Claro, o filme não é o começo. Ele remete a um nexo anterior. Mas não haverá cena anterior desprovida de fantasia e dramaturgia, qualquer que seja a arena da vida. O que nos torna cativos da máquina de sonhos de que somos feitos. Por isso, mesmo antes, sempre nos situamos depois do filme, porque o solo a partir do qual nos erguemos como personagens compõe-se de tramas das fabulações que pudemos narrar e compartilhar.

Panorama visto da ponte: três mulheres, Valentim e Paloma

As três mulheres correspondem a três vetos distintos à relação: (a) a amiga-amante que rejeita o protagonista; (b) a desconhecida que discute uma relação inexistente, confundindo o protagonista com o marido, tomando-o por quem ele não é; negando-o, portanto, por meio da troca de automóveis e papéis; (c) a vendedora boliviana de bugigangas na praia que recusa a abordagem, porque é casada com homem ciumento.
A quarta mulher será a filha, afastada do pai pela interposição do homem com quem se casa e do mundo obtuso e luxuoso deste homem. Mas em nenhum momento a filha estará presente. Seu nome será apenas referido. Ela será o ponto de fuga na cadeia de vetos e obstruções.
O primeiro veto dá-se no plano da afetividade e da intimidade: falando-se a mesma língua da subjetividade, os sujeitos se repelem.
O segundo, na esfera da ilusão e do engano, em que a língua é a mesma, porém os sujeitos que a falam não são mutuamente identificáveis ou reconhecíveis, confundem-se, misturam-se em suas máscaras, em suas personae.
O terceiro, no âmbito formal e institucional, em que as línguas são substantivamente diferentes e o obstáculo está regulado na própria constelação de papéis --identificados, formalmente, pela instituição: o matrimônio.
A primeira mulher tem endereço. Mora em um apartamento ao qual o protagonista tem acesso barrado, vence a barreira e termina derrotado pela barreira. Ela tem lugar fixo.
A segunda está em um carro e o troca por outro, confundindo o meio de transporte com o espaço doméstico, onde se abre com o marido. O veículo é um meio que remete a deslocamento.
A terceira está sempre na praia, espaço comum, lugar de todos e de ninguém, em que não há posições fixas, mas onde o pouso e a fixação provisória podem ocorrer.
As três distintas relações com o espaço ganham funções especiais quando confrontadas com o mar, cujo significado oscila entre a sepultura do suicida e o horizonte de seu possível renascimento. A ambivalência devolve ao sujeito a responsabilidade pelo gesto que atribui sentido. A fluidez da água é receptiva às opções contraditórias e extremas. O sujeito absorve o poder de decisão. Assume na integralidade o papel de fonte do sentido. O mar é espelho. Um imenso vazio que acolhe projeções.
A ponte liga os pólos opostos na geografia do sujeito, permitindo o tránsito entre os pontos (o protagonista suicida e, no fim, esperançoso), o que implica infundir incerteza e insegurança no espírito apaziguado (papel diabólico, perturbador), mas também implica acender o clarão da dúvida na sombra do desespero. Os polos são permeáveis a seus contrários.
Eis aí, na tensão matricial em que se instaura o sentido, a possibilidade da vida e da dramaturgia. Da vida como desassossego e esperança, desamparo e aposta. Da dramaturgia como universo em que convivem as contradições, no qual as polaridades deixam-se contaminar pela vontade feroz e vital de seu oposto, liquidando certezas, atazanando consciências em paz, pacificando espíritos em guerra.
A primeira mulher está mais distante do mar do que a boliviana, porque esta última demarca os limites com mais solidez e consistência: as línguas são efetivamente diferentes e há o abismo cavado pelo casamento, sinal da norma institucionalizada, sancionada pelo Estado --poder que transcende os indivíduos e suas idiossincrasias.
Entre o apartamento bem instalado e a praia, está o carro, feito casa duas vezes, veículo para circular entre polos e possibilidades, mas também espaço apto a simular a casa, ainda que sempre em condições melancólicas, que remetem mais a desabrigo e confusão de papéis do que a abrigo e acolhimento. Mesmo quando usado como casa, o carro sugere movimento e torna a imagem difusa, indiscernível, meio rua, meio sítio doméstico, meio elo entre alternativas, a caminho de cada uma, embora as excluindo. Automóvel, o que se desloca, leva e traz para opções de vida diferentes e opostas, até virar arma, virando-se pelo avesso e virando ao avesso os horizontes do protagonista.
O espelho que a iminência da morte propõe ao protagonista, como um enigma --depois que o sertão virou mar e o mar, sertão, depois que o alto pôs-se a baixo e o baixo, ergueu-se, depois que o carro virou, e a vida--, é o hippie latino-americano, que ele não foi. O protagonista preferiu formar-se em medicina e seguir uma carreira no hospital público de São Gonçalo. Carreira que não foi capaz de lhe garantir o amor próprio nem o de sua filha, Paloma --a mediadora, pomba da paz que une as pontas do destino. A filha voou para os braços de um yuppie confortavelmente instalado na caretice do mercado, e usufrui as benesses que o vértice superior da escala liberal-darwiniana lhe proporciona. O pai não tem lugar nos salões dessa corte que ele desdenha.
Talvez ele tenha perdido sintonia com o canal de comunicação afetiva e simbólica da filha não por ter seguido tal ou qual caminho, mas por ter hesitado entre todos os caminhos, mantendo-se no carro, indeciso, impreciso, incompleto, fragmentado, errante. O automóvel reduz o lugar do protagonista no mundo a um prosaico e incessante vai e vem, a um lusco-fusco incerto, frágil, poroso, oscilante, de imagem difusa e identidade esmaecida.
Radicalizar a oscilação e provocar a capotagem do veículo foi o primeiro passo para uma promessa de fixação. Pelo menos, um ensaio de ruptura com a circulação entre a vida e a morte, o sim e o não. Entre a nudez sob a chuva do êxtase pagão e a mimetização histérica do desalento, do desabrigo, do exílio.
Ser salvo pelo marido da boliviana remete o protagonista a um campo simbólico em que superpõem-se dois conteúdos, apenas na aparência contraditórios: por um lado, a solidez estável e bem marcada das normas, da vida institucionalizada e da língua estabelecida, ainda que em sua pronunciada estranheza; por outro lado, a vida nas margens, a experiência limite dos estrangeiros, que se inscrevem no território do Outro sem aderir à imagem da alteridade, sem renunciar à diferença, entretanto negociando com o Outro por meios estáveis, fortes, duradouros, criativos, flexíveis e aptos à intertradutibilidade.
Por exemplo: a arte. Por exemplo: o teatro. Por exemplo, o comércio na praia e o casamento com Valentim.
De que modo se comunicam a transitividade como método de construção dramatúrgica e a trama evocada no relato? Se me fosse permitido recorrer a uma dualidade metafísica absolutamente imprópria, mas aqui talvez útil, diria que a forma é necessária ao conteúdo. Indispensável. Se, em Depois do Filme, os personagens e suas vias de solução do enigma humano são campos de experimentação e linguagens mutuamente traduzíveis, se os caminhos individuais são postos de observação do fenômeno existencial abertos à frequentação pela poiesis imaginária, se os polos extremos são estações pelas quais nos é dado circular, é porque a transitividade nos é acessível e talvez constitua a arte mais rigorosa e iluminadora. Se as possibilidades do humano nos dizem respeito, todas, sempre, é porque podemos percorrer as mais variadas arenas subjetivas por meio da interpretação empática e da compaixão, metamorfoseando-nos --como o poeta--, seres permeáveis e transitivos. É porque as podemos narrar e reviver, dramaturgicamente. É porque as podemos, portanto, transformar.


[1] Flora Sussekind e Gerald Thomas mostraram o potencial dramatúrgico resultante de explicitação análoga para montagem de Nelson Rodrigues.