domingo, 13 de março de 2011

Elite da Tropa 2: projeto literário e intervenção política


                                                          (Publicado em dezembro de 2010 na Revista do PSOL)

          O livro Elite da Tropa 2 é a quarta obra de uma tetralogia à qual dediquei os últimos sete anos de trabalho. A série inclui Cabeça de Porco (escrito com MV Bill e Celso Athayde –Objetiva, 2005), Elite da Tropa (com André Batista e Rodrigo Pimentel –Objetiva, 2006) e Espírito Santo (com Carlos Eduardo Ribeiro Lemos e Rodney Miranda –Objetiva, 2009). A intenção do Cabeça de Porco era mergulhar no mundo de valores, percepções, sentimentos, relações e práticas dos jovens envolvidos com a violência armada, nas áreas mais vulneráveis de cidades situadas em todas as cinco regiões do país. O propósito era compreender, não julgar, e levar os leitores a compartilhar nossa experiência de interlocução com esses jovens. A expectativa era proporcionar um contato empático com um universo ignorado e distante da maioria dos leitores; um universo humano refratado quase sempre pelo véu de estigmas, preconceitos, ódio e temor. Não tencionávamos fazer a apologia da violência ou sequer justificá-la, mas desvelar suas raízes, plantadas fundas como punhais no corpo e na alma de crianças e adolescentes socialmente invisíveis, devastados pela rejeição e a indiferença, pela fome de afeto e reconhecimento (que pode ser mais dolorosa e devastadora do que a fome física), por estigmas, racismo, desigualdades monstruosas e as iniquidades naturalizadas.
          A intenção do primeiro Elite da Tropa era a mesma, mas aplicada aos supostos inimigos daqueles jovens focalizados no Cabeça: os policiais. Quem são esses personagens que vestem uniforme, recebem salários, armas e instrução do Estado, e caçam traficantes nos morros, nas vilas, favelas e periferias, como feitores de um escravismo extinto? Quem são esses policiais que, em nome da Lei, a transgridem sem pudor e piedade, matando seus irmãos de classe numa insensata “falsa-guerra” fratricida? No Rio de Janeiro, por exemplo, os números descrevem um genocídio de jovens pobres, na maioria negros: entre 2003 e 2009, inclusive, 7.854 foram mortos por ações policiais. A categoria oficial, “autos-de-resistência”, omite o fato de que, segundo estimativas apoiadas em pesquisas sobre os dados de 2003, cerca de 65% dos aludidos confrontos confrontam apenas a verdade, pois se referem, na realidade, a execuções extra-judiciais. Seriam os policiais indivíduos sádicos, pervertidos, assassinos contumazes por prazer e vocação? Nesse caso, como explicar a escala assombrosa alcançada pela brutalidade individual dos policiais e a manutenção de tamanha regularidade, ao longo do tempo, configura um padrão e apresentando o perfil de uma ... política? Ao mergulhar no universo de emoções, valores, visões de mundo e experiências dos policiais, procuramos compartilhar com os leitores algumas surpresas para quem só opera com estereótipos: lá estão seres humanos como quaisquer de nós, que chegam muito jovens para o processo de formação e cedo aprendem o que depois aplicarão. São cidadãos trabalhadores, oriundos principalmente das classes populares, que cumprem ordens, acreditando, ao fazê-lo, estar honrando seu país, sua instituição e os valores que foram levados a cultuar. Muitos se perdem na corrupção mais degradante; outros, submetidos a treinamentos que emulam a “lavagem cerebral”, convertem-se em máquinas de matar e torturar, confundindo heroísmo com brutalidade letal contra suspeitos e patriotismo com violação dos direitos mais elementares dos segmentos sociais estigmatizados. Nesse contexto, propusemos aos leitores uma pergunta: o problema é individual? Os policiais, individualmente, são “inimigos do povo”? A responsabilidade se esgota neles, enquanto indivíduos? A questão se resume a “desvios de conduta”, como sugerem as declarações oficiais? Ou se trata de um consistente e permanente programa institucional, alicerçado em uma cultura corporativa anti-democrática (refratária aos direitos humanos e aos mandamentos constitucionais) e alimentado por decisões criminosas de autoridades e governantes? Ademais, acrescentamos: esse mecanismo de horror e morte, envolto nas máscaras da segurança pública, não poderia se sustentar sem que a venda da Justiça a cegasse para a barbárie em curso. Todavia, tampouco a Justiça poderia manter-se alheia, se a maioria da sociedade não se omitisse, adotando postura hipócrita e cúmplice.
          Tais conclusões conduziram ao terceiro livro, Espírito Santo, cujo foco é o crime organizado plantado no próprio judiciário e infiltrado nas instituições políticas e policiais. O assassinato do jovem, brilhante, honrado e corajoso juiz, Alexandre Martins de Castro Filho, em 2003, é o ponto de partida da narrativa que explora o labirinto das investigações até o desvendamento da trama covarde. Indivíduos têm responsabilidade. Não devemos ser paternalistas ou tapar o sol com a peneira. Mas se não houver espaços políticos e brechas institucionais, apoios coletivos e conexões com interesses maiores, não explicamos a cadeia dos episódios. Mesmo as paixões têm lastros numa realidade mais ampla que as canalizam em determinadas direções e limitam suas possibilidades de expressão criminosa. Por isso, é o Judiciário que está em tela de juízo, não os indivíduos, isoladamente.
          Por fim, chegamos ao livro que acaba de ser publicado, Elite da Tropa 2 (em parceria com Cláudio Ferraz, A. Batista e R. Pimentel –Nova Fronteira, 2010). Nessa obra, as principais intenções são as seguintes: (1) chamar a atenção para as milícias e mostrar como elas funcionam e como tiranizam comunidades vulneráveis de modo selvagem. Elas são máfias formadas sobretudo por policiais e constituem as formas mais graves do crime organizado, no Brasil, ligando, organicamente, corrupção e brutalidade policiais às instituições políticas e a outras instituições públicas. (2) Ao contar a história das milícias, procuramos demonstrar que, no Rio, não há mais espaço para falar em corrupção e brutalidade policial como problemas menores, secundários, circunstanciais. Nem é mais legítimo falar em crime e violência, no Rio (mas o ovo da serpente está disseminado, ainda que variações regionais sejam significativas), sem admitir que numerosos contingentes policiais são os mais destacados e poderosos empreendedores das dinâmicas criminosas. Foi-se o tempo em que policiais eram cúmplices por omissão ou mesmo por sociedade passiva. Hoje, no Rio de Janeiro, eles são os principais protagonistas das formas mais perversas e perigosas da criminalidade. Ressalve-se, entretanto, que não generalizamos. Seria absolutamente injusto com dezenas de milhares de profissionais honestos, que arriscam sua vida por salários indignos. Eles são vítimas desse processo: sofrem os efeitos da degradação institucional; pagam o preço da deteriorada imagem pública; sentem-se acuados, humilhados e traídos pela presença arrogante e crescente dos falsos colegas. (3) Ao incluir na trama um militante dos direitos humanos que se elege deputado e luta contra as milícias com desassombro, imensa generosidade e admirável dignidade, prestamos uma homenagem a Marcelo Freixo (deputado estadual pelo PSOL), mas também mostramos que nem tudo está perdido na política e nas polícias (pois há alguns personagens policiais também muito positivos). Um  personagem literário não é uma pessoa real. A ficcionalização que transforma Marcelo Freixo em “Marcelo Freitas” mesclou características reais de Freixo com outras, inspiradas em outras pessoas, e as combinou com alguns elementos imaginários, para permitir sínteses e mergulhos na subjetividade que exigem liberdade criativa. Mas a homenagem é verdadeira e a defesa da política nobre e virtuosa se realizou. (4) A obra procura, ainda, trabalhar em profundidade dilemas éticos, demonstrando não haver cartilhas, dogmas ou gramáticas capazes de abarcar a exuberante e subversiva produtividade do real, que nos desafia continuamente com dilemas inesperados e de imensa complexidade, exigindo da consciência ética a mesma ousadia e fecundidade que se requer da criação estética. E como, para mim, não há política virtuosa, digna, justa, boa ou correta, dissociada da ética, acredito que, tendo discutido questões éticas pela mediação dos dramas vividos pelos personagens, o livro Elite da Tropa 2, também por esse viés, contribui para o debate político.
          Antes de concluir, um alerta: as milícias são filhas bastardas da segurança privada informal e ilegal. Na medida em que esta está presente em todo o país, a matriz genética das máfias policiais já se nacionalizou. Explico: com raríssimas exceções, os salários da massa policial são insuficientes, no Brasil –para dizer o mínimo e manter-me fiel a um vocabulário educado. Para sobreviver e garantir a reprodução de sua unidade doméstica, os trabalhadores policiais, em sua maioria, buscam uma segunda ocupação, um “bico”. Vão desempenhá-lo, quase sempre, como é natural, na área de sua especialidade: a segurança. Ocorre que, em quase todo o país –e por boas razões--, é ilegal o servidor da segurança pública vincular-se à segurança privada. Posto não ser permitido fazê-lo formalmente, engaja-se, então, o policial, no setor informal da segurança privada ou nela atua, informalmente. Os malefícios para sua saúde, para seu desempenho na segurança pública e os riscos à sua própria vida são evidentes –as mortes de policiais concentram-se na “folga”. Apesar de tudo isso ser amplamente conhecido, as autoridades fingem nada ver. Não fiscalizam. Não tomam qualquer providência. Afinal, sabem que se fiscalizarem a segurança privada informal, encontrarão seus policiais fazendo o “bico”. E também sabem que se reprimirem essa ilegalidade, a demanda salarial se projetará sobre o governo, provocando o colapso do orçamento –que é, vale repetir, irreal. A Polícia Federal é responsável por essa fiscalização, mas com 14.500 funcionários e uma infinidade de atribuições não teria como realizá-la (mesmo se o desejasse, o que, por óbvio, não é o caso). Os governos estaduais poderiam reivindicar essa atribuição, mediante convênio –como foi feito no passado, por pouco tempo. Mas não têm o menor interesse em meter a mão no vespeiro, optando por preservar o gato-orçamentário, isto é, o financiamento privado (informal e ilegal) da segurança pública. Eis, portanto, o Estado despudoradamente partido: um pé na legalidade, outro na ilegalidade.
O problema maior (há vários outros muito sérios) é este: sob o manto da negligência oficial, prosperam dinâmicas benignas e malignas. As primeiras, a despeito dos males que causam (os já referidos e outros), representam esforços honestos (ainda que ilegais) de homens e mulheres policiais que apenas lutam para completar sua renda. As dinâmicas malignas começam nas ações de policiais corruptos que provocam insegurança para vender segurança; prosseguem na formação de esquadrões da morte e grupos de extermínio; e alcançam o patamar superior de degradação e gravidade quando deságuam na organização de milícias.
          Por isso, o livro Elite da Tropa 2 lança este alerta à sociedade: ainda que só o Rio conheça as manifestações mais articuladas e perigosas das milícias, o ovo da serpente já se espalhou pelo país. Até quando os governos continuarão deitados em berço esplêndido, se ufanando do crescimento econômico, alheios ao veneno que avança na retaguarda do Estado, alimentado pelo gato orçamentário e suas implicações?

sábado, 12 de março de 2011

Rio de Janeiro


(publicado na Revista Poder, dezembro de 2010)

          Balneário decadente, belo e violento, arena ardente e sensual de miséria e desordem? Ou estado cheio de vida e possibilidades atraentes, antecipando um país que se reinventa? Pálida imagem melancólica de uma corte extinta? Ou retrato vibrante do futuro? Relicário de perdas ou ensaio geral de uma sociedade mais democrática? O Rio de Janeiro não é isso ou aquilo: é tudo isso, ao mesmo tempo. Nos próximos anos, a balança se inclinará para o cenário positivo ou negativo, dependendo do que fizermos dos desafios que, hoje, nos inspiram e assombram.
          Na economia, o estado do Rio sustenta o segundo lugar no ranking nacional graças ao petróleo, com tudo o que isso significa em termos de potencial de crescimento, sobretudo em função do pré-sal, mas também de riscos, pelas mesmas razões. Hospeda o maior pólo de cinema e vídeo, e uma rede poderosa de instituições científicas e acadêmicas, mas nos envergonha com o segundo pior desempenho brasileiro na educação. São crônicos os problemas em saúde, infra-estrutura e saneamento. As polícias fluminenses são extraordinariamente violentas e corruptas, e seus índices de esclarecimento de crimes são ínfimos. Entre 2003 e 2009, em supostos confrontos com suspeitos, elas mataram 7.854 civis e formaram as milícias, máfias brutais que tiranizam e exploram comunidades, ocupando espaços na política. Em meio ao fogo cruzado, o Estado paga aos policiais o segundo pior salário do país.
Apesar dos pesares, a população não deixa de se deslumbrar com as conquistas recentes –como a perspectiva de sediar a final da Copa do Mundo e as Olimpíadas--, ainda que nem por isso se mostre disposta a renunciar a um ceticismo corrosivo e contagiante.
          Tudo isso junto e misturado nos faz um povo movido a auto-ironia, esse humor trincado e doído que se nutre das ambiguidades. Aquelas mesmas que parecem forjar seu destino: elas começam na paisagem e terminam no convívio babélico de realidades antagônicas e tendências contraditórias. Nesse mesmo tom, seguindo o ritmo irregular das ambivalências, a sociedade maldiz a política e abençoa políticos e governantes, lhes concedendo novos mandatos, depois de despejar o veneno da repulsa sobre seus nomes, fotos e feitos.
          Foi o que aconteceu nas últimas eleições: o governador Cabral foi reeleito por larga margem, enquanto Gabeira, reivindicando representar o “novo”, se aliava a Cesar Maia, cujo clã comandou a prefeitura da capital por 16 anos. Cabral não venceu apenas pelos erros da oposição. Impôs-se também por méritos próprios: depois de três anos repetindo, na segurança pública, a velha tática do confronto, rendeu-se ao bom senso e retomou políticas que já se haviam comprovado promissoras. Rebatizou as experiências de policiamento comunitário nas favelas de UPPs (Unidades de Policiamento Pacificador) e as implantou com grande sucesso de público e crítica. Os territórios libertados do tráfico passaram a abrigar projetos sociais, como deve ser. Além disso, Cabral exibiu as vantagens da colaboração a um eleitorado cansado de infindáveis guerras políticas.
          Foi o bastante para sair das urnas maior do que entrou. Ainda que, nos porões, policiais e políticos mafiosos continuem roendo os fundamentos do Estado democrático de direito. Enquanto a casa não cai, o Rio vai adiando a refundação de suas instituições policiais. E se preparando para as festas de fim de ano e o carnaval. Afinal, ninguém é de ferro.

Resposta de Luciana Genro à Revista Veja

Amig@s, 
                    muita gente discorda das ideias políticas de Luciana Genro, que não foi reeleita para a Câmara Federal, apesar da extraordinária votação que recebeu,  porque o PSOL não alcançou o coeficiente no RS. Mas não conheço quem não a respeite e reconheça sua integridade pessoal, assim como a seriedade, a honestidade, a dedicação com que se entrega à defesa de suas ideias. Contudo, a revista Veja mais uma vez surpreende e ataca a correção de quem menos mereceria essa atitude. Por isso, em homenagem a seu passado e a seu futuro, faço questão de reproduzir, abaixo, a carta aberta que Luciana escreveu.


Carta aberta de Luciana Genro


O Projeto  Emancipa já é um sucesso. As incrições ainda não terminaram, mas já temos mais inscritos do que as 100 vagas disponíveis. O apoio que temos recebido é enorme. Este apoio se expressou inclusive na imprensa gaúcha, que através de vários comunicadores e jornalistas ajudou a divulgar o projeto pela sua relevância social, não se prestando a reproduzir as "denúncias" da revista Veja . Todos sabem da lacuna existente na preparação dos jovens oriundos das escolas públicas que desejam entrar na universidade. Então, quem poderia querer detonar  um projeto que oferece preparação para o vestibular e o Enem GRATUITAMENTE para estudantes de escolas públicas? Aqui no Rio Grande do Sul, só os "viúvos" de Yeda Crusius. 

Entretanto, em respeito às pessoas que me apoiam e respeitam e que têm sido questionadas por quem não conhece a minha trajetória, esclareço: 


- Vou processar a revista Veja por danos morais, visto que o jornalista que assina a matéria sequer me ouviu, publicando uma  reportagem absolutamente fantasiosa sobre o Projeto Emancipa, coordenado por mim no Rio Grande do Sul.

- A Secretaria de Educação não me concedeu nenhum privilégio como insinua a reportagem. A direção do Colégio Júlio de Castilhos, assim como outras escolas estaduais,  proporciona a  execução de diversos projetos  nas suas dependências. O Emancipa é um deles e paga à escola R$ 600,00 por mês pelas duas salas.
- Os (as) professores(as) não serão "bem remunerados" como maliciosamente diz a reportagem. Receberão R$ 20,00 a hora aula. Como são apenas duas turmas, a média de remuneração de cada professor deverá ser por volta de R$ 300,00. 

- A cota de patrocínios do Emancipa está fechada com 5 empresas e  não estamos em busca de mais patrocinadores como mentirosamente afirma a reportagem.
-Sobre a Icatu Seguros, um empresa que atua no mercado gaúcho através do Banrisul há  mais de 10 anos, muito me estranha que somente agora, para me atacar, a Veja levante suspeitas sobre esta relação. Eu não respondo pelas atividades de nenhuma empresa, mas a verdade é sempre útil: basta verificar o balanço 2010 do Banrisul, disponível na internet, para comprovar a mentira. A seguradora Icatu não tem contrato  de exclusividade com o Banrisul. Além disso esta empresa apóia diversas OSCIPs e ONGs, não apenas o Emancipa. 

- Quanto à afirmação de que "Luciana, que na política criticava o pai, na vida empresarial usa de seu prestígio para lucrar", quem terá que se explicar é a Veja. E terá que fazê-lo no Justiça. Primeiro, porque não estou "lucrando" e nem sequer estou na "vida empresarial". O Emancipa não é uma empresa e não pode dar lucro. Não é por que deixei de ser deputada que vou abrir mão de realizar atividades socialmente relevantes, mesmo que de forma privada, mas que respondam a interesses coletivos.  Quanto ao suposto uso do prestígio do meu pai, Tarso Genro, minha trajetória me autoriza a ter certeza que os parceiros do Emancipa avaliaram em primeiro lugar o meu próprio prestígio para decidir pela participação no projeto. 


Luciana Genro - Coordenadora do Projeto Emancipa-RS