sábado, 5 de novembro de 2011

Beijo Infame e a arte pós-antropofágica do Brasil na diáspora


No mundo das conexões e das redes, os contos de Beijo Infame, de Toni Marques (editora Record, 2011), fecham o circuito entre o cu do mundo e as calças da farda nazi-fashion, promovendo um choque fascinante e revelador entre Lolita, a exorbitância naturalizada de Wall Street, o enxame brazuca catando migalhas em New York, as tribos hippies tradicionais repaginadas e a cena erótico-eletrizante que desconstitui a apropriação perversa dos abusos de Abu-Graib.
Os contos são independentes, ainda que atravessados por ecos, uns dos outros, e armados em torno de um tema regente –a sexualidade--, de uma cena constante e contagiante –a migração--, e de um método: a substituição do modelo estético metafórico engendrado em 1922 e recriado no Tropicalismo, a antropofagia (assimilação inventiva), pela operação da conectividade metonímica universal, que verte, projeta ou dobra o mundo da ficção sobre uma plataforma ilimitada em que os eventos e os sentidos articulam-se em um continuum autopoiético.
O elo entre os polos que instaura o continuum e aciona a vital e diabólica pulsação migrante é o beijo (da morte e da vida) entre o que está dentro e o que está fora, o que abastece o ventre parrudo de abutres pantagruélicos e o que é expelido pelo metabolismo do corpo coletivo.
Por migração entendo, aplicando a clave da literatura de Toni Marques: deslizamentos, multiplicação de afluentes e possibilidades, trânsito entre identidades, neutralização de fronteiras, ou escavações desconstrutivas e desnaturalizantes para localizar passagens secretas e canais clandestinos que liguem o grande salão burguês aos porões saturados de esgoto.
Digo “esgoto” com cuidado. Faço-o incluindo uma cláusula cautelar: é razoável, neste contexto analítico preciso, dizer “esgoto” e dar-lhe o lugar de complemento corrosivo do clichê “grande salão burguês”, desde que se tenha em mente que a reciclagem estética redefine as qualidades dos substantivos e os reinscrevem em outras ordens de discursos e afetos.
Justificada a retórica binária convencional, retomo o curso da interpretação.
As barreiras cruzadas surpreendem expectativas e problematizam identidades dos mais variados tipos, de uma ponta a outra do espectro da auto-invenção dos sujeitos. O autor logra realizar esse movimento político-simbólico, simultaneamente sutil e radical, que desestabiliza verdades naturalizadas, sem artificialismos intelectuais, respeitando e valorizando a especificidade da narrativa ficcional.
A esse processo desestabilizador de expectativas e conceitos serve a insinuação escatológica sob a fina membrana do sexo, que incendeia a imaginação de narradores e demais personagens. Os lábios que sussurram a palavra de amor beijam a aniquilação, corporificada nos vestígios do dia expulsos como dejetos dos corpos individuais e sociais.
Objetos e gestos sem classe, desclassificados, que coincidem com os registros de informações classificadas (enquanto sigilosas e controladas), são invertidos e convertidos em alvos de culto, prazer e devoção. O profano não é a verdadeira essência do sagrado, como a aplicação de estratégias estéticas metafóricas poderia demonstrar. Na literatura de Marques --ao contrário do que talvez predomine nos romances do Marquês maldito--, o profano e o sagrado se comunicam, desdobrando-se um no outro à moda das superfícies de Moebius, como os extremos do corpo engatados no beijo infame. 
O repertório infinito das preferências sexuais oferece ao autor o cardápio para sua imaginação narrativa. A escolha não é arbitrária, posto que a imagem de fundo com a qual se dialoga, tacitamente, remete, repito, à antropofagia, enquanto modelo estético e político cultural. As referências latentes a Bruegel, Rabellais, Sade, Bataille e Henry Miller, entre outras, conferem ao texto uma espessura que o adensa, sem bloquear sua encantadora fluência ou empostar sua saborosa e acessível dicção. A simplicidade, aliás, é a marca das obras dos autores citados, que se inscrevem ao mesmo tempo nos pontos extremos de suas respectivas culturas e nas fronteiras entre o erudito e o popular.
Dá o que pensar o contraste entre dois eixos permanentes entre os quais oscilam e vibram os contos: conexão e desdobramentos metonímicos em um continuum (do corpo, da escala moral, da pirâmide social, dos afetos), por um lado, e diáspora –espelho da migração--, por outro.
A conclusão suscitada poderia ser: o beijo infame não resolve os dilemas que propõe, mas este inacabamento é coerente com seu projeto, que não espera a redenção das sínteses metafóricas: antes aponta para fora, para nós, leitores, migrantes sempre, na irreversível diáspora que é nossa condição, e para o vazio produzido pela angústia de nossa interrogação ante o abismo dos relatos. Cabe a cada um de nós preenchê-lo não com respostas, mas com o desdobramento dessa obra inquietante que se abre, retomando-a, seja para relê-la com outros olhos e sentidos, seja para levar adiante seu projeto criativo, nele inscrevendo nossa marca como diferença e proporcionando ao mundo outra experiência poética.
            Toni Marques é mais um notável autor brasileiro cosmopolita, que agora se junta ao panteão que cultuo, ao lado, entre outros, de Carlos Sussekind, Reinaldo Moraes, Daniel Galera, Bernardo Carvalho, Bráulio Mantovani, Rubem Fonseca, Vilma Arêas, Carlito Azevedo, Paulo Henriques Britto, Silviano Santiago, Sérgio Santana, Lourenço Mutareli e João Gilberto Noll.