sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

A Próxima Década no Campo da (In)segurança Pública


(Publicado na Revista Época (27-dez-2010), que está nas bancas)

O que nos reservam os próximos dez anos? As principais tendências apontam para a nacionalização dos problemas, que deixam de ser exclusividade dos centros metropolitanos e se espalham pelo país. A epidemia das armas e, portanto, dos homicídios tem se deslocado para áreas de crescimento tardio mas acelerado, cujo desenvolvimento oferece oportunidades, ainda que o emprego para jovens continue exíguo. É o caso de cidades nordestinas e do Centro-Oeste ou do litoral fluminense, por exemplo. Se o petróleo deixou rastro de mudanças rápidas e desordenadas, aquecendo a violência (como em Macaé), o pré-sal pode intensificar esse fenômeno. As fronteiras tendem a ferver, sob a tensão dos tráficos, contrabandos e piratarias. Foz do Iguaçu é o caso emblemático. A questão do terrorismo se imporá por conta dos eventos internacionais e também porque a precariedade de nossos controles atrairá grupos que, pressionados em suas regiões de origem, busquem um recuo tático.
Enquanto o tráfico de drogas, envolvendo controle territorial e domínio de comunidades, tende ao declínio porque é anti-econômico, além de desnecessariamente arriscado, o negócio das drogas continuará prosperando, em um formato nômade, mais leve e menos perigoso, como ocorre nas democracias mais avançadas.
A insuficiência dos salários pagos aos policiais continuará a empurrá-los para o bico na segurança privada, o que, sendo ilegal, obrigará as autoridades a conviver com o ilícito, para evitar demanda salarial e colapso orçamentário. Essa tolerância, ao gerar uma área de sombra, manterá fora do campo de fiscalização os policiais que se aproveitarem disso para provocar insegurança e vender segurança, ou para formar grupos de extermínio, ou ainda para se organizar como milícias. Tais máfias tendem, portanto, a uma expansão viral, estendendo tentáculos políticos e se infiltrando em outras instituições públicas.
O sistema político-eleitoral, como se sabe, estimula a corrupção. Nesse ambiente, os crimes de colarinho branco tem prosperado e tendem a avançar, porque as barreiras às ilegalidades, progressivamente derrubadas, abrem espaço para novas conexões entre distintos tipos de crime organizado, produzindo configurações mais complexas e ameaçadoras.
A homofobia parece ganhar força, na exata medida em que novos direitos se afirmam, suscitando reações perversas em grupos culturalmente vulneráveis aos racismos e preconceitos --o mesmo valendo para a violência de gênero e a brutalidade contra crianças. A praga do crack somada à nossa hipócrita política de drogas tendem a acelerar a criminalização da pobreza, no contexto marcado pela seletividade das ações policiais e pela profunda desigualdade no acesso à Justiça. O aumento veloz da população carcerária incrementará a degradação ainda maior do sistema penitenciário e jogará na carreira criminal mais e mais jovens presos por pequenos delitos não-violentos. A corrupção policial e a brutalidade letal, bases de sustentação de tantos crimes (a começar pelo tráfico de drogas), crescerão se forem mantidas as atuais estruturas organizacionais das polícias, refratárias à gestão racional e ao controle externo. A desvalorização da perícia, comum em boa parte do país, continuará reduzindo prisões ao flagrante e inviabilizando investigações.
As boas experiências em alguns estados, como as UPPs, e em vários municípios tendem a não se generalizar nem aprofundar, porque se realizam apesar do modelo policial e da arquitetura institucional da segurança e não graças a eles.
O que fazer para prevenir esse cenário? Sabemos que há necessidade de políticas multi-setoriais, porque os dilemas se inscrevem em diferentes dimensões da vida social, do emprego à educação. Vou me concentrar na área mais específica, avaliando o passado recente.
Os oito anos de Lula na presidência foram antecedidos pela divulgação de um plano nacional de segurança pública, que o primeiro mandato ensaiou implementar, mas optou por abandonar, e o segundo retomou, parcialmente, esvaziando-o das propostas mais ambiciosas e potencialmente geradoras de conflitos. O plano firmava o compromisso de propor ao Congresso que alterasse o artigo 144 da Constituição, transformando, assim, a arquitetura institucional da segurança pública, que priva a União de maiores responsabilidades, exclui os municípios e condena as polícias estaduais à reatividade, à rivalidade, à repetição inercial de velhos padrões ineficazes e ilegais, ao voluntarismo espasmódico e ao descontrole. O modelo policial com duas meias polícias, a civil e a militar, impede a gestão racional, legalista e eficiente.
No segundo mandato, o ministro da Justiça, Tarso Genro, implementou o programa nacional de segurança com cidadania, destacando a prevenção e o papel dos municípios. Na secretaria nacional de segurança pública, Ricardo Balestreri criou a rede nacional de ensino em segurança pública, o mais bem sucedido esforço de qualificação dos profissionais da área. As reformas institucionais, entretanto, ficaram fora da agenda.
Impossível prever o que fará a presidente Dilma Roussef. Os governos federais –sem exceção-- têm se esquivado de enfrentar o desafio das reformas. Resta a pergunta: o Brasil, que já enfrenta tantos gargalos --infra-estrutura, educação, sistemas tributário e político--, suportaria o cenário prospectivo que expus? A próxima década parece começar sob o signo da falta de vontade política para dirigir e celebrar um pacto nacional supra-partidário em torno de transformações institucionais inadiáveis, na segurança. Por outro lado, a década promete avanços sociais e econômicos aos quais corresponderá a exigência de que as lideranças políticas (e a sociedade) encarem com mais coragem, lucidez e espírito público suas responsabilidades. A pressão do processo histórico contra os gargalos ou nos condena ao atraso e ao eterno retorno da violência ou nos força a encarar a sério nossas debilidades para corrigi-las. Digo isso com otimismo, confiando na potência criativa dessa contradição.

domingo, 19 de dezembro de 2010

Memórias de um Presente Remoto

--Sobre o livro A Dona das Chaves, uma mulher no comando das prisões do Rio de Janeiro, de Julita Lemgruber, com Anabela Paiva  (Editora Record, 2010). 
--Originalmente publicado no caderno Prosa e Verso (O Globo), em 18 de dezembro de 2010
           
             Há muito tempo Julita Lemgruber nos devia um relato extenso sobre sua vasta experiência no sistema penitenciário. Ela já escrevera uma obra acadêmica, Cemitério dos Vivos, sobre o presídio feminino, Talavera Bruce. Mas faltava a narrativa mais ampla, que incorporasse o período em que esteve à frente do Sistema Penitenciário do Estado do Rio de Janeiro. Um relato que fosse também memória e testemunho da mulher que se afirma como agente político de transformações, sem renunciar à responsabilidade da gestão; da militante dos direitos humanos que hesita, chocada com as condições a que o Estado submete os presos, mas resiste ao desespero de seguidas frustrações e prossegue, obstinada, para reduzir danos, violações, sofrimentos e ilegalidades.
O livro é notável. Flui numa linguagem envolvente, precisa e emocionante, graças à parceria com a jornalista Anabela Paiva, ourives da palavra e madura no tratamento dessa matéria espinhosa e árida, a segurança pública, que ela domina como poucos. A obra será mapa imprescindível para quem quiser conhecer, por dentro, o mundo esquecido do cárcere, em nosso passado recente. Escrevi passado e vacilo: é de presente que se trata, um presente carregado de ruínas, espécie de inconsciente social fora do tempo, habitando uma cavidade da história. Um presente que, embora ostensivo e eloquente, não se deixa verbalizar. Dor coletiva recalcada e sem luto, que retorna para assombrar o sono da cidade. Imagem invertida da virtude sem a qual não seria possível o maniqueísmo, em cujos termos o mal é o Outro. Passado enraizado em cada um de nós como destino atávico --compulsão à repetição. Filme que todos já vimos: masmorras escuras, úmidas, cheirando a ossos incinerados e dejetos. Com horror descobrimos que, sim, são humanos os restos em andrajos que esquecemos lá no fundo desses buracos da razão e da memória. São animais expiatórios que frequentam o limiar. Cometeram barbaridades, alguns? Pois agora, esse quadro dantesco das penas, o presídio, é produzido por nós. A barbárie, agora, é nossa. Melhor não olhar. Melhor meter os cárceres pestilentos no cofre e jogá-lo ao mar. Mas a dona das chaves mergulha, abre de novo cofre e feridas para que, no espelho do Outro, nos espantemos com a intensidade da violência de que somos capazes --nós, os sãos, homens e mulheres de bem, governos de esquerda, cidadãos democratas. Por isso, Julita passaria a dedicar sua vida à defesa de penas alternativas à privação da liberdade para autores de crimes não violentos.
Há o lado solar disso tudo. A vida que pulsa nas prisões, a generosidade de alguns guardas, técnicos e gestores, a persistência de militantes, a vocação saudável de presos que resistem à moenda material e espiritual. Contando sua trajetória nos dois governos Brizola (1983-1986 e 1991-1994), Julita descreve a saga de um bando de sonhadores humanistas, que abandonaram o conforto do debate ideológico, arregaçaram as mangas e foram à luta para mudar a realidade vergonhosa de brutalidade e corrupção. Sem paternalismos, mas com sensibilidade e respeito, usando a legalidade como bússola e limite, sem confundir o necessário rigor com a violência arbitrária, sem misturar disciplina com terror e humilhação. Por outro lado, o grupo admirável não passava de um Exército de Brancaleone, lutando até o limite de suas forças, ante a indigência dos recursos. O grande paradoxo devastou ilusões: os governos Brizola, que ergueram a bandeira dos direitos humanos, não foram muito diferentes dos outros, na recusa a sustentar com investimentos materiais os valores cultuados nos discursos. Coube a esse grupo de devotados e destemidos fazer das tripas coração para estreitar a distância entre a palavra governamental e o compromisso prático. Mais uma vez ficava claro que presos e presídios não têm vez. Mas os Brancaleones fizeram a diferença, a despeito de tudo. A saga da mulher cuja lucidez só é suplantada pela coragem valerá para a sociedade brasileira como exemplo e inspiração.

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Quem tem medo de Cláudio Ferraz?


Apresentação de Cláudio Ferraz que escrevi para a Revista Época
(um dos 100 brasileiros homenageados)

Magro e sereno como um David Niven dos trópicos, Cláudio Ferraz recusa os tranquilizantes tarja-preta que lhe sugerem, nos momentos de tensão máxima. Prefere exercitar-se, como convém a um faixa preta em jiu-jitsu, instrutor de boxe francês, expert em tiro, íntimo das técnicas de operações especiais, mestre em resgate de reféns e mergulhador tarimbado. O corpo deve manter-se ágil e certeiro para acompanhar a velocidade com que a cabeça dispara seus comandos. Quem disse que basta inteligência e capacidade investigativa? Esta é uma das lições aprendidas na Escola de Oficias da reserva da Marinha, do Corpo de Fuzileiros Navais. Incansável e perfeccionista, o delegado titular da DRACO (Delegacia de Repressão ao Crime Organizado, da Polícia Civil do Rio de Janeiro) ostenta, entretanto, uma fraqueza constrangedora: caso precise sussurrar uma informação, no front, sua voz de barítono colocará em risco a operação. Esforça-se por domesticá-la, dobrá-la, guardá-la no cofre, metê-la no bolso, mas ela se esquiva, rebelde, como um elástico sonoro fosforescente. Talvez a voz indomável de cantor de ópera seja o sintoma de uma conta que não fecha: como caberia tamanha obstinação em um metro e setenta e dois, sob o constante terno escuro e a gravata discreta?
Ninguém é tão temido e detestado pelas milícias do Rio de Janeiro, essas máfias cruéis, compostas por policiais, que tiranizam e exploram comunidades pobres, humilhando, torturando e assassinando. Nenhum outro policial carioca prendeu tanto miliciano e desbaratou tantas redes do crime organizado sob sua forma mais grave. Cláudio, com sua equipe da DRACO, foi responsável por mais de 400 das 500 prisões de milicianos efetuadas desde 2007.
Foi uma honra tê-lo como parceiro na realização do livro, Elite da Tropa 2, ao lado de André Batista e Rodrigo Pimentel.

domingo, 12 de dezembro de 2010

Introdução a meu livro, Segurança Tem Saída (Sextante, 2006)



Você me permitiria tentar adivinhar o que passa por sua cabeça? Com todo o respeito à sua individualidade e à originalidade de seu pensamento, tomo a liberdade de ousar uma especulação, só como um teste. Uma espécie de jogo. Você dirá se cheguei perto, está bem?
Aposto que você acha que segurança pública não tem jeito. Não tem saída. Que as coisas estão cada vez piores e que não há luz no fim do túnel. Em políticos e governos, você não acredita mais. Nas polícias, menos ainda. Os casos de corrupção se multiplicam. Até superintendentes da polícia federal aparecem nas manchetes dos jornais, protagonizando casos escabrosos. Claro que você admite que há muita gente séria, honesta e competente nas polícias. E até reconhece que há gente honrada na política. Mas você duvida que esses gatos pingados sejam capazes de fazer a diferença e mudar alguma coisa. Eles estão perdidos num oceano de desmandos e ineficiência.
Você olha para as elites e vê lavagem de dinheiro e uma fauna variada de criminosos de colarinho branco. Olha para as camadas populares e vê tráfico, armas, violência, em um ambiente marcado pela ausência do Estado: desemprego, falta de acesso à educação, maternidade precoce, infância abandonada, baixa auto-estima generalizada revertendo em culto à violência, famílias em crise, condições sociais dramáticas.
Quando você pensa que algum personagem poderoso finalmente foi preso, logo descobre que ele está sendo beneficiado pelo inacreditável instituto da “prisão especial” ou que está se beneficiando de prerrogativas que lhe permitem aguardar exame de recursos em casa. Enquanto isso, você percebe que um rapaz pobre e negro, que tentou furtar uma bicicleta continua preso há meses, à espera de julgamento.
As notícias que chegam das penitenciárias parecem filme de terror, assim como são atos de terror aqueles promovidos por facções comandadas do interior das prisões e que conseguem parar São Paulo, a maior cidade do país.
Você não vê nenhuma providência de vulto, que envolva os recursos e a mobilização de instrumentos de poder correspondentes ao tamanho do problema. Os governos desconversam e empurram com a barriga. E o problema vai se agravando, cada vez mais. Você já não agüenta mais retórica, conversa fiada e promessas. Quer ação. Quer solução. E quer isso já, agora, imediatamente. Afinal, você tem de chegar em casa, hoje, em segurança. Seus filhos também.
Se você pensa assim, ou mais ou menos assim, é com você mesmo que eu quero conversar. É a você que se dirige esse livro.
Concordo com quase tudo o que você pensa. Só discordo de um detalhe, que é, na verdade, essencial e faz toda a diferença: estou convencido de que, apesar de tudo, existe saída, sim! Tenho convicção de que a saída é a implantação de um programa, envolvendo vários tipos de ações simultâneas, em diversas áreas. Por isso, acho que deveríamos unir as nossas forças e apoiar esse programa, porque ele é perfeitamente factível. Acredito que ele seria capaz seja de produzir resultados imediatos, seja de pavimentar o terreno para as transformações mais profundas, sem as quais os problemas vão se reproduzir cada vez com mais intensidade. Por essa razão, acho que deveríamos difundir as propostas contidas nesse programa e exigir que os políticos e gestores públicos se comprometessem a colocá-las em prática.
Não pense que sou ingênuo. Sei que nada disso será fácil. Estou nessa batalha há muito tempo. Tempo suficiente para ter aprendido, na prática, que não será fácil. Mas tempo também suficiente para ficar convencido de que esse programa é realista e factível, sim.
Vamos ver se depois de ler este pequeno livro, você vai concordar comigo e se animar um pouco mais. Isso será muito importante. Até porque parte do sucesso do programa depende do apoio e da confiança da opinião pública, quer dizer, depende, em alguma medida, do seu apoio e de sua confiança.
***
Antes de lhe explicar as idéias que defendo, quero alertar para um perigo. Se você não quer resolver um problema, defina-o de um modo muito complicado e distante de seu poder de intervenção. Se a gente faz assim, pronto: o problema vira um embrulho depositado em algum futuro distante. Este gesto corresponde mais ou menos a esconder um objeto perigoso bem longe do alcance das crianças, lá na prateleira mais alta do armário.
Vou lhe dar um exemplo e acho que você vai entender o que quero dizer, sobretudo se tiver uma filha adolescente: sabe qual o melhor método que uma adolescente insegura pode adotar para ficar longe dos meninos, dos namoros e dos riscos de ser rejeitada? Ficar apaixonada por um menino mais velho, completamente inatingível, ou por um astro de cinema, de preferência que more em outro continente. Assim, o coração e a cabeça estarão ocupados e não haverá espaço para mais ninguém. O que existe nesse caso, de real, não é o afeto pelo ídolo, mas a necessidade de proteger-se do amor possível, porque esse pode dar certo e aquilo que pode dar certo, também pode dar errado, e se der errado é doloroso à beça e fere o amor-próprio. A paixão adolescente pelo ídolo é um modo de enganar-se a si mesma, fingindo que não é medo, mas amor, o medo que deveras sente. Muita gente carrega essa armadilha consigo a vida toda. A insegurança e o medo de sofrer é que provocam as paixões impossíveis.
O que é que os romances de nossas filhas têm a ver com segurança pública? Os romances, nada, mas a atitude tem tudo a ver com nosso modo mais comum de não resolver o problema. Sabe a que atitude me refiro? Àquela bem conhecida, que se expressa mais ou menos assim: “Para resolver o problema da segurança é preciso transformar as estruturas sociais brasileiras, porque enquanto nosso país for como é hoje, qualquer iniciativa na segurança será apenas um paliativo, sem nenhum valor”. Para algumas cabeças adolescentes, não basta que o menino seja mais velho e estude em outra escola; é preciso que more na Europa e seja um astro de cinema bem casado com a estrela da moda. Essas meninas que têm medo de amar são iguaizinhas àqueles que, nos debates sobre segurança, começam falando da natureza humana e terminam esbravejando contra o imperialismo norte-americano e o capitalismo globalizado neo-liberal. Pronto. O pacote está bem amarrado e foi jogado ao fundo do mar. Qual maluco se disporia a mergulhar nessas águas turvas e profundas? Reconhecer a necessidade de mudar o mundo como pré-condição para uma realização específica, significa condenar-se à impotência e ao imobilismo.
Proponho que nos inspiremos naquele provérbio que nos ensina a dar um passo de cada vez e a não definir a caminhada por sua extensão máxima. Se o alcoólatra se impuser a obrigação de não beber nunca mais, terá mais dificuldade de não beber nunca mais do que se tiver a humildade de definir seu objetivo de tal maneira que ele pareça e seja mais acessível, prometendo a si mesmo não beber hoje, nestas vinte e quatro horas.
Como nós não vamos mudar o mundo e o Brasil tão cedo, muito menos a natureza humana, seria mais prudente identificar objetivos factíveis e começar a avançar em sua direção. Um objetivo factível é reduzir a violência, salvar vidas e gerar um ambiente mais saudável, pacífico e respeitoso. Para mim, isso representaria muito, muitíssimo. Acredito que para você também.
Então, vamos colocar um problema de cada vez, ainda que iniciativas simultâneas sejam sempre necessárias, para que cada passo seja viável e cumpra seus objetivos pequenos e realistas. Podemos tornar as polícias melhores do que são?  Mais eficientes, mais honestas e confiáveis, menos violentas e mais capazes de valorizar seus profissionais? Podemos adotar políticas públicas mais inteligentes e eficientes na prevenção da violência, mesmo com poucos recursos? Podemos combater com mais eficácia a lavagem de dinheiro e as conexões entre o crime, a polícia e a política? Haveria algumas medidas capazes de causar prejuízo a essa gente, bloqueando pelo menos algumas de suas práticas? Haveria como lidar com o ciclo vicioso dos crimes mais graves, interceptando a dinâmica que os realimenta? Poderíamos viver em um país em que se andasse pelas ruas com menos medo? Um país em que houvesse menos violência doméstica, contra as mulheres? Em que os negros não sofressem tanto os efeitos perversos do racismo e a homofobia fosse quase apenas lembrança amarga de um passado preconceituoso? Um país em que as escolas funcionassem e mantivessem as crianças e os adolescentes interessados, o dia inteiro, em atividades de ensino, arte, cultura, esporte e lazer? Um país com mais oportunidades e menos armas, menos mães precoces e menos uso irregular do solo, que agride o meio ambiente e impede o planejamento urbano? Em que a política fosse uma prática menos degradada? Em que os governos fossem um pouquinho mais decentes e eficientes? Em que a estrutura do Estado não se limitasse a secretarias e ministérios, que são feudos, rivais entre si, e por isso acabam bloqueando a aplicação de políticas públicas integradas e coordenadas? Um país em que o acesso à Justiça fosse menos desigual? Em que a política criminal fosse menos refratada por filtros de cor e classe? Seria possível tornar o Brasil um país menos injusto e um pouquinho mais capaz de respeitar suas próprias leis? Seria possível fazer com que as leis valessem realmente para todos?
Possível seria. Outros países conseguiram. Estamos dando ainda os primeiros passos em nossa trajetória democrática, que é tão recente. Todos os objetivos listados acima são importantes e estão ligados entre si. Mas se tentarmos alcançar todos eles ao mesmo tempo, com uma só fórmula –seja ela a diminuição do Estado, seja ela a socialização dos meios de produção, ou qualquer outro modelo de grandes pretensões, não chegaremos a lugar nenhum.
Temos de começar a caminhar na direção de todos esses objetivos, sabendo que cada um exigirá sacrifícios, perseverança, muita pressão da opinião pública, vontade política, programas específicos inteligentes e ampla participação da sociedade. Vamos ter de ousar bastante, senão continuaremos patinando.
Ousadia não significa sectarismo político. Sem negociações, entendimentos, alianças e acordos em torno de objetivos pontuais, não haverá força suficiente para promover nenhuma mudança. Vamos errar, aprender com os erros e recomeçar. É assim que os países avançam. Depende também de nós. Fazer-nos de vítimas da maldade alheia, da corrupção alheia, da incompetência alheia, é muito ruim e não resolve. Só faz nos sentirmos superiores e isentos de culpa. E omite o fato de que somos todos, em alguma medida, co-responsáveis. Vamos arregaçar as mangas e construir essa outra realidade, mas com os pés na terra e avançando passo a passo, deixando a retórica de lado e pensando em soluções objetivas, ainda que sempre parciais e insuficientes. Um dia de cada vez. Sem ilusões. Com os pés no chão. Mas também sem essa descrença e essa apatia, que só colaboram para que tudo continue como está. Ou piore.
Insisto no passo a passo e falo em programas. Não há contradição. Bons programas são modulares, ou seja, respeitam os estágios, os passos, as transições, as nuances, as sutilezas, as idas e vindas. O fato de abandonarmos os discursos utópicos e os modelos pretensiosos que prometem soluções completas e globais não significa que estejamos abandonando a racionalidade dos programas. Uma prática sem um programa que a oriente é um caminhar às cegas, sem rumo. É puro improviso. Na política, isso se chama voluntarismo e tem sido uma das maiores pragas nacionais. Sobretudo na área da segurança.
***
Para que você saiba de onde vieram essas idéias que, juntas, formam esse tal programa de que lhe falo, seria bom que lhe contasse o seguinte: eu não as inventei. Elas estão por aí, circulando em muitas cabeças e sendo, várias delas, testadas em muitas experiências, realizadas no Brasil e no exterior.
No Brasil, as melhores experiências, curiosamente, têm sido aquelas realizadas na esfera municipal. Destaque-se aqui a experiência conduzida pela secretária Regina Mikki e o prefeito José de Filipe, em Diadema. Ao nível do Estado, a mais fértil, consistente, ambiciosa, inteligente e de perfil sistêmico, apesar de graves dificuldades e limitações, tem sido a de Minas Gerais, sob a batuta de Luiz Flávio Sapori, Antônio Augusto Anastasia e do governador Aécio Neves. Não poderiam ser esquecidas as iniciativas pioneiras do saudoso Cel. Carlos Magno Nazareth Cerqueira, a lucidez e a transparência de Helio Luz, o êxito do GPAE, sob a liderança exemplar do Ten-Cel. Antônio Carlos Carballo Blanco, no Rio de Janeiro, e os projetos piloto vitoriosos do Cel. Augusto Severo, em Belo Horizonte.
No exterior, alguns dos destaques têm sido Bogotá, Boston, nos anos 1990, e Nova York, os consórcios locais italianos, os contratos de gestão franceses, os experimentos preventivos ingleses e a ouvidoria irlandesa. Tem havido experiências interessantes no Uruguai, em Santiago do Chile, no Peru, no Panamá, na cidade do México.
Meu esforço tem sido, nos últimos 15 ou 20 anos, reunir esse conhecimento e essas experiências, buscando aprender com quem faz, com os que viveram o dia a dia. Eu próprio acabei me tornando gestor de algumas dessas experiências e procurei fazer a minha parte – a este respeito escrevi o livro Meu Casaco de General; 500 dias no front da segurança pública do Estado do Rio de Janeiro (Companhia das Letras, 2000). Deixei de ser professor e pesquisador e meti a mão na massa. Acertei e errei. Procurei ouvir, com humildade, todas as partes envolvidas no drama coletivo da violência. Dialoguei com as famílias que perderam seus filhos, em todas as frentes dessa guerra insensata. Conversei esses anos todos com policiais e traficantes, juízes e defensores públicos, promotores e agentes penitenciários, presos e funcionários das entidades sócio-educativas, conselheiros tutelares e professores, agentes de saúde e secretários de segurança, peritos e pesquisadores, psicólogos e psicanalistas, médicos e guardas municipais, governadores e prefeitos, deputados e senadores, e até com dois Presidentes da República.
Meu trabalho não passa de uma síntese e de uma sistematização do que encontrei de melhor, do que alcançou os melhores resultados. Claro que com adaptações aos dois focos desse livro: as urgências nacionais, em seu conjunto, e o estado do Rio de Janeiro, em particular.
***
Só lhe peço um favor. Antes de começar a ler, lembre-se de que as instituições que existem nasceram um dia e vão morrer um dia. Elas não são eternas, nem naturais. São artifícios humanos, criados para resolver alguns problemas, de forma justa ou injusta, a favor de alguns ou de todos. Isso significa simplesmente o seguinte: se as instituições deixam de funcionar, isto é, deixam de resolver problemas e se tornam parte dos problemas, ou se o tipo de solução que oferecem não interessa a todos -ou seja, não é justa-, temos de mudá-las, de substituí-las por outras.
Quando, por alguma razão, as condições tornam impossível mudá-las e substituí-las, temos de mudar essas condições. Seria um absurdo nos resignarmos, como Nação, à impotência.
É o que acontece, hoje, com as polícias, as penitenciárias, as entidades sócio-educativas, a política criminal e a política de drogas. Não funcionam. Temos de mudá-las. Temos de substituí-las por outras.
Vamos deixar de meias palavras. Reformas superficiais não bastam.
Podemos fazer isso? Podemos ir tão fundo, tão longe, com tanta radicalidade? Sim, podemos. Outros países fizeram isso e o mundo não acabou. Melhor fazermos logo, antes que o mundo desabe sobre nossas cabeças. Aliás, já está começando a desabar. Não temos muito tempo. Possível é. Quem diz que não é ou tem preguiça de pensar, ou ignora as experiências mundiais, ou não conhece a gravidade de nossa situação, ou está interessado em manter as coisas como estão, por conveniências corporativistas.
Mas não pensem que advogo o desemprego em massa para os profissionais da justiça criminal e da segurança pública. Nada disso. Mesmo com as mais profundas transformações, seus direitos trabalhistas podem e devem ser garantidos. Um novo processo de capacitação deve se impor a todos. Mas isso não significa exclusões de quem não tem o que temer, diante da Justiça. Pelo contrário, no novo contexto gerado pelas mudanças, os profissionais seriam respeitados e valorizados como nunca foram em nosso país.
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Haveria diferentes formas de lhe apresentar minhas propostas para a segurança pública e as razões que as justificam: um tratado técnico, um relatório acadêmico, uma pesquisa científica, uma coletânea de relatos, com testemunhos e denúncias, uma ficção que leve o leitor ao fundo do inferno para que sinta bem de perto as emoções e o cheiro da realidade (parece uma contradição, mas não é: às vezes, nada é mais real do que a ficção). Já tentei todos esses caminhos. Alguns foram mais eficientes do que outros, mas nenhum foi capaz de explicar, com a clareza necessária, o que acredito que deva e possa ser feito para solucionar esse impasse – a insegurança crônica- que nos assusta, provoca tanto sofrimento inútil e trava os passos do país.
Escolhi uma estratégia diferente. Imaginei um conjunto de reportagens e entrevistas fictícias escritas em um futuro próximo.
Intercalei essas imaginárias “notícias do futuro” com lembranças do passado, lembranças verdadeiras, para compartilhar com você um retrato revelador e menos conhecido dos bastidores do poder. As cenas de bastidor, todas verídicas, comprovam a gravidade da situação e mostram algumas ligações entre política, polícia e crime. Resolvi incluir essas narrativas em primeira pessoa para que você entenda as razões pelas quais as mudanças que proponho teriam de ser tão amplas e drásticas.
Um dos personagens das “notícias do futuro” é um futuro presidente da República; outro, um futuro governador do Estado do Rio; há também uma secretária de segurança e um deputado federal. Esses personagens imaginários agem e falam para implantar e explicar as propostas desse programa que defendo e que desejo lhe apresentar. Acho mais interessante ouvir essas explicações desse modo, através da voz desses personagens, porque tudo fica mais compreensível, claro, palpável e vivo. São personagens do meu sonho. Dizem e fazem o que eu gostaria que presidentes, governadores, secretários e deputados dissessem e fizessem.
Os protagonistas são figuras improváveis, mas não impossíveis: dois governantes sensatos e corajosos, honestos e dispostos a sacrificar suas respectivas carreiras para salvar o Brasil e, em particular, o Rio de Janeiro. Uma secretária de segurança serena, objetiva e, ao mesmo tempo, ética, profunda e revolucionária. Não ria. Você sabe que milagres às vezes acontecem. Sobretudo quando o que ocorre se passa na dimensão humana. Talvez você tenha esquecido, talvez todos nós tenhamos esquecido, mas os seres humanos também possuem virtudes. E as mulheres e homens públicos, também.
De todo modo, garanto que não pensei em nenhum plano mirabolante, que exija heróis ou santos. Só uma pitadinha de inteligência e ousadia. Não é muito. Sobretudo tendo em vista a situação atual e a magnitude do que está em jogo.
Ah! Ia passando por cima de um dado óbvio mas freqüentemente omitido: somos um país democrático - pela primeira vez em nossa história- há pouquíssimo tempo. Nossa Constituição –a primeira realmente democrática, apesar de suas limitações- foi promulgada em 1988. Os países que vivem uma democracia consolidada acumulam experiências seculares e ainda tropeçam. Como democracia, somos super-jovens. Quase tudo está ainda por construir. É muito cedo para jogarmos a toalha.
Passo imediatamente às notícias imaginárias de um futuro próximo, intercaladas por flashes de memória que retratam algumas situações que vivi há não muito tempo, nos bastidores da segurança pública. Futuro e passado dialogam, indiretamente.
Na segunda parte do livro, você encontrará um breve diagnóstico da criminalidade e das instituições da segurança pública, seguido de uma apresentação sumária e sistemática das propostas que você conhecerá, primeiro, sob a forma dos relatos jornalísticos ou das entrevistas imaginários. Decidi incluir a versão didática porque, apesar da redundância ao nível do conteúdo, ela pode facilitar a consulta e a organização de sua própria memória. A primeira parte provavelmente deixará você com uma impressão confusa, em função da profusão de idéias, argumentos e iniciativas narradas. A segunda exibirá a ordem que liga as propostas entre si.

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

A crise no Rio e o pastiche midiático


Sempre mantive com jornalistas uma relação de respeito e cooperação. Em alguns casos, o contato profissional evoluiu para amizade. Quando as divergências são muitas e profundas, procuro compreender e buscar bases de um consenso mínimo, para que o diálogo não se inviabilize. Faço-o por ética –supondo que ninguém seja dono da verdade, muito menos eu--, na esperança de que o mesmo procedimento seja adotado pelo interlocutor. Além disso, me esforço por atender aos que me procuram, porque sei que atuam sob pressão, exaustivamente, premidos pelo tempo e por pautas urgentes. A pressa se intensifica nas crises, por motivos óbvios. Costumo dizer que só nós, da segurança pública (em meu caso, quando ocupava posições na área da gestão pública da segurança), os médicos e o pessoal da Defesa Civil, trabalhamos tanto –ou sob tanta pressão-- quanto os jornalistas.
Digo isso para explicar por que, na crise atual, tenho recusado convites para falar e colaborar com a mídia:
(1) Recebi muitos telefonemas, recados e mensagens. As chamadas são contínuas, a tal ponto que não me restou alternativa a desligar o celular. Ao todo, nesses dias, foram mais de cem pedidos de entrevistas ou declarações. Nem que eu contasse com uma equipe de secretários, teria como responder a todos e muito menos como atendê-los. Por isso, aproveito a oportunidade para desculpar-me. Creiam, não se trata de descortesia ou desapreço pelos repórteres, produtores ou entrevistadores que me procuraram.
(2) Além disso, não tenho informações de bastidor que mereçam divulgação. Por outro lado, não faria sentido jogar pelo ralo a credibilidade que construí ao longo da vida. E isso poderia acontecer se eu aceitasse aparecer na TV, no rádio ou nos jornais, glosando os discursos oficiais que estão sendo difundidos, declamando platitudes, reproduzindo o senso comum pleno de preconceitos, ou divagando em torno de especulações. A situação é muito grave e não admite leviandades. Portanto, só faria sentido falar se fosse para contribuir de modo eficaz para o entendimento mais amplo e profundo da realidade que vivemos. Como fazê-lo em alguns parcos minutos, entrecortados por intervenções de locutores e debatedores? Como fazê-lo no contexto em que todo pensamento analítico é editado, truncado, espremido –em uma palavra, banido--, para que reinem, incontrastáveis, a exaltação passional das emergências, as imagens espetaculares, os dramas individuais e a retórica paradoxalmente triunfalista do discurso oficial?
(3) Por fim, não posso mais compactuar com o ciclo sempre repetido na mídia: atenção à segurança nas crises agudas e nenhum investimento reflexivo e informativo realmente denso e consistente, na entressafra, isto é, nos intervalos entre as crises. Na crise, as perguntas recorrentes são: (a) O que fazer, já, imediatamente, para sustar a explosão de violência? (b) O que a polícia deveria fazer para vencer, definitivamente, o tráfico de drogas? (c) Por que o governo não chama o Exército? (d) A imagem internacional do Rio foi maculada? (e) Conseguiremos realizar com êxito a Copa e as Olimpíadas?
Ao longo dos últimos 25 anos, pelo menos, me tornei “as aspas” que ajudaram a legitimar inúmeras reportagens. No tópico, “especialistas”, lá estava eu, tentando, com alguns colegas, furar o bloqueio à afirmação de uma perspectiva um pouquinho menos trivial e imediatista. Muitas dessas reportagens, por sua excelente qualidade, prescindiriam de minhas aspas –nesses casos, reduzi-me a recurso ocioso, mera formalidade das regras jornalísticas. Outras, nem com todas as aspas do mundo se sustentariam. Pois bem, acho que já fui ou proporcionei aspas o suficiente. Esse código jornalístico, com as exceções de praxe, não funciona, quando o tema tratado é complexo, pouco conhecido e, por sua natureza, rebelde ao modelo de explicação corrente. Modelo que não nasceu na mídia, mas que orienta as visões aí predominantes. Particularmente, não gostaria de continuar a ser cúmplice involuntário de sua contínua reprodução.
Eis por que as perguntas mencionadas são expressivas do pobre modelo explicativo corrente e por que devem ser consideradas obstáculos ao conhecimento e réplicas de hábitos mentais refratários às mudanças inadiáveis. Respondo sem a elegância que a presença de um entrevistador exigiria. Serei, por assim dizer, curto e grosso, aproveitando-me do expediente discursivo aqui adotado, em que sou eu mesmo o formulador das questões a desconstruir. Eis as respostas, na sequência das perguntas, que repito para facilitar a leitura:
(a) O que fazer, já, imediatamente, para sustar a violência e resolver o desafio da insegurança?
Nada que se possa fazer já, imediatamente, resolverá a insegurança. Quando se está na crise, usam-se os instrumentos disponíveis e os procedimentos conhecidos para conter os sintomas e salvar o paciente. Se desejamos, de fato, resolver algum problema grave, não é possível continuar a tratar o paciente apenas quando ele já está na UTI, tomado por uma enfermidade letal, apresentando um quadro agudo. Nessa hora, parte-se para medidas extremas, de desespero, mobilizando-se o canivete e o açougueiro, sem anestesia e assepsia. Nessa hora, o cardiologista abre o tórax do moribundo na maca, no corredor. Não há como construir um novo hospital, decente, eficiente, nem para formar especialistas, nem para prevenir epidemias, nem para adotar procedimentos que evitem o agravamento da patologia.  Por isso, o primeiro passo para evitar que a situação se repita é trocar a pergunta. O foco capaz de ajudar a mudar a realidade é aquele apontado por outra pergunta: o que fazer para aperfeiçoar a segurança pública, no Rio e no Brasil, evitando a violência de todos os dias, assim como sua intensificação, expressa nas sucessivas crises?
Se o entrevistador imaginário interpelar o respondente, afirmando que a sociedade exige uma resposta imediata, precisa de uma ação emergencial e não aceita nenhuma abordagem que não produza efeitos práticos imediatos, a melhor resposta seria: caro amigo, sua atitude representa, exatamente, a postura que tem impedido avanços consistentes na segurança pública. Se a sociedade, a mídia e os governos continuarem se recusando a pensar e abordar o problema em profundidade e extensão, como um fenômeno multidimensional a requerer enfrentamento sistêmico, ou seja, se prosseguirmos nos recusando, enquanto Nação, a tratar do problema na perspectiva do médio e do longo prazos, nos condenaremos às crises, cada vez mais dramáticas, para as quais não há soluções mágicas.
A melhor resposta à emergência é começar a se movimentar na direção da reconstrução das condições geradoras da situação emergencial. Quanto ao imediato, não há espaço para nada senão o disponível, acessível, conhecido, que se aplica com maior ou menor destreza, reduzindo-se danos e prolongando-se a vida em risco.
A pergunta é obtusa e obscurantista, cúmplice da ignorância e da apatia.
(b) O que as polícias fluminenses deveriam fazer para vencer, definitivamente, o tráfico de drogas?
Em primeiro lugar, deveriam parar de traficar e de associar-se aos traficantes, nos “arregos” celebrados por suas bandas podres, à luz do dia, diante de todos. Deveriam parar de negociar armas com traficantes, o que as bandas podres fazem, sistematicamente. Deveriam também parar de reproduzir o pior do tráfico, dominando, sob a forma de máfias ou milícias, territórios e populações pela força das armas, visando rendimentos criminosos obtidos por meios cruéis.
Ou seja, a polaridade referida na pergunta (polícias versus tráfico) esconde o verdadeiro problema: não existe a polaridade. Construí-la –isto é, separar bandido e polícia; distinguir crime e polícia-- teria de ser a meta mais importante e urgente de qualquer política de segurança digna desse nome. Não há nenhuma modalidade importante de ação criminal no Rio de que segmentos policiais corruptos estejam ausentes. E só por isso que ainda existe tráfico armado, assim como as milícias.
Não digo isso para ofender os policiais ou as instituições. Não generalizo. Pelo contrário, sei que há dezenas de milhares de policiais honrados e honestos, que arriscam, estóica e heroicamente, suas vidas por salários indignos. Considero-os as primeiras vítimas da degradação institucional em curso, porque os envergonha, os humilha, os ameaça e acua o convívio inevitável com milhares de colegas corrompidos, envolvidos na criminalidade, sócios ou mesmo empreendedores do crime.
Não nos iludamos: o tráfico, no modelo que se firmou no Rio, é uma realidade em franco declínio e tende a se eclipsar, derrotado por sua irracionalidade econômica e sua incompatibilidade com as dinâmicas políticas e sociais predominantes, em nosso horizonte histórico. Incapaz, inclusive, de competir com as milícias, cuja competência está na disposição de não se prender, exclusivamente, a um único nicho de mercado, comercializando apenas drogas –mas as incluindo em sua carteira de negócios, quando conveniente. O modelo do tráfico armado, sustentado em domínio territorial, é atrasado, pesado, anti-econômico: custa muito caro manter um exército, recrutar neófitos, armá-los (nada disso é necessário às milícias, posto que seus membros são policiais), mantê-los unidos e disciplinados, enfrentando revezes de todo tipo e ataques por todos os lados, vendo-se forçados a dividir ganhos com a banda podre da polícia (que atua nas milícias) e, eventualmente, com os líderes e aliados da facção. É excessivamente custoso impor-se sobre um território e uma população, sobretudo na medida que os jovens mais vulneráveis ao recrutamento comecem a vislumbrar e encontrar alternativas. Não só o velho modelo é caro, como pode ser substituído com vantagens por outro muito mais rentável e menos arriscado, adotado nos países democráticos mais avançados: a venda por delivery ou em dinâmica varejista nômade, clandestina, discreta, desarmada e pacífica. Em outras palavras, é melhor, mais fácil e lucrativo praticar o negócio das drogas ilícitas como se fosse contrabando ou pirataria do que fazer a guerra. Convenhamos, também é muito menos danoso para a sociedade, por óbvio.
(c) O Exército deveria participar?
Fazendo o trabalho policial, não, pois não existe para isso, não é treinado para isso, nem está equipado para isso. Mas deve, sim, participar. A começar cumprindo sua função de controlar os fluxos das armas no país. Isso resolveria o maior dos problemas: as armas ilegais passando, tranquilamente, de mão em mão, com as benções, a mediação e o estímulo da banda podre das polícias.
E não só o Exército. Também a Marinha, formando uma Guarda Costeira com foco no controle de armas transportadas como cargas clandestinas ou despejadas na baía e nos portos. Assim como a Aeronáutica, identificando e destruindo pistas de pouso clandestinas, controlando o espaço aéreo e apoiando a PF na fiscalização das cargas nos aeroportos.
(d) A imagem internacional do Rio foi maculada?
Claro. Mais uma vez.
(e) Conseguiremos realizar com êxito a Copa e as Olimpíadas?
Sem dúvida. Somos ótimos em eventos. Nesses momentos, aparece dinheiro, surge o “espírito cooperativo”, ações racionais e planejadas impõem-se. Nosso calcanhar de Aquiles é a rotina. Copa e Olimpíadas serão um sucesso. O problema é o dia a dia.
Palavras Finais
Traficantes se rebelam e a cidade vai à lona. Encena-se um drama sangrento, mas ultrapassado. O canto de cisne do tráfico era esperado. Haverá outros momentos análogos, no futuro, mas a tendência declinante é inarredável. E não porque existem as UPPs, mas porque correspondem a um modelo insustentável, economicamente, assim como social e politicamente. As UPPs, vale dizer mais uma vez, são um ótimo programa, que reedita com mais apoio político e fôlego administrativo o programa “Mutirões pela Paz”, que implantei com uma equipe em 1999, e que acabou soterrado pela política com “p” minúsculo, quando fui exonerado, em 2000, ainda que tenha sido ressuscitado, graças à liderança e à competência raras do ten.cel. Carballo Blanco, com o título GPAE, como reação à derrocada que se seguiu à minha saída do governo. A despeito de suas virtudes, valorizadas pela presença de Ricardo Henriques na secretaria estadual de assistência social --um dos melhores gestores do país--, elas não terão futuro se as polícias não forem profundamente transformadas. Afinal, para tornarem-se política pública terão de incluir duas qualidades indispensáveis: escala e sustentatibilidade, ou seja, terão de ser assumidas, na esfera da segurança, pela PM. Contudo, entregar as UPPs à condução da PM seria condená-las à liquidação, dada a degradação institucional já referida.
O tráfico que ora perde poder e capacidade de reprodução só se impôs, no Rio, no modelo territorializado e sedentário em que se estabeleceu, porque sempre contou com a sociedade da polícia, vale reiterar. Quando o tráfico de drogas no modelo territorializado atinge seu ponto histórico de inflexão e começa, gradualmente, a bater em retirada, seus sócios –as bandas podres das polícias-- prosseguem fortes, firmes, empreendedores, politicamente ambiciosos, economicamente vorazes, prontos a fixar as bandeiras milicianas de sua hegemonia.
Discutindo a crise, a mídia reproduz o mito da polaridade polícia versus tráfico, perdendo o foco, ignorando o decisivo: como, quem, em que termos e por que meios se fará a reforma radical das polícias, no Rio, para que estas deixem de ser incubadoras de milícias, máfias, tráfico de armas e drogas, crime violento, brutalidade, corrupção? Como se refundarão as instituições policiais para que os bons profissionais sejam, afinal, valorizados e qualificados? Como serão transformadas as polícias, para que deixem de ser reativas, ingovernáveis, ineficientes na prevenção e na investigação?
As polícias são instituições absolutamente fundamentais para o Estado democrático de direito. Cumpre-lhes garantir, na prática, os direitos e as liberdades estipulados na Constituição. Sobretudo, cumpre-lhes proteger a vida e a estabilidade das expectativas positivas relativamente à sociabilidade cooperativa e à vigência da legalidade e da justiça. A despeito de sua importância, essas instituições não foram alcançadas em profundidade pelo processo de transição democrática, nem se modernizaram, adaptando-se às exigências da complexa sociedade brasileira contemporânea. O modelo policial foi herdado da ditadura. Ele servia à defesa do Estado autoritário e era funcional ao contexto marcado pelo arbítrio. Não serve à defesa da cidadania. A estrutura organizacional de ambas as polícias impede a gestão racional e a integração, tornando o controle impraticável e a avaliação, seguida por um monitoramento corretivo, inviável. Ineptas para identificar erros, as polícias condenam-se a repeti-los. Elas são rígidas onde teriam de ser plásticas, flexíveis e descentralizadas; e são frouxas e anárquicas, onde deveriam ser rigorosas. Cada uma delas, a PM e a Polícia Civil, são duas instituições: oficiais e não-oficiais; delegados e não-delegados.
E nesse quadro, a PEC-300 é varrida do mapa no Congresso pelos governadores, que pagam aos policiais salários insuficientes, empurrando-os ao segundo emprego na segurança privada informal e ilegal.
Uma das fontes da degradação institucional das polícias é o que denomino "gato orçamentário", esse casamento perverso entre o Estado e a ilegalidade: para evitar o colapso do orçamento público na área de segurança, as autoridades toleram o bico dos policiais em segurança privada. Ao fazê-lo, deixam de fiscalizar dinâmicas benignas (em termos, pois sempre há graves problemas daí decorrentes), nas quais policiais honestos apenas buscam sobreviver dignamente, apesar da ilegalidade de seu segundo emprego, mas também dinâmicas malignas: aquelas em que policiais corruptos provocam a insegurança para vender segurança; unem-se como pistoleiros a soldo em grupos de extermínio; e, no limite, organizam-se como máfias ou milícias, dominando pelo terror populações e territórios. Ou se resolve esse gargalo (pagando o suficiente e fiscalizando a segurança privada /banindo a informal e ilegal; ou legalizando e disciplinando, e fiscalizando o bico), ou não faz sentido buscar aprimorar as polícias.
O Jornal Nacional, nesta quinta, 25 de novembro, definiu o caos no Rio de Janeiro, salpicado de cenas de guerra e morte, pânico e desespero, como um dia histórico de vitória: o dia em que as polícias ocuparam a Vila Cruzeiro. Ou eu sofri um súbito apagão mental e me tornei um idiota contumaz e incorrigível ou os editores do JN sentiram-se autorizados a tratar milhões de telespectadores como contumazes e incorrigíveis idiotas.
Ou se começa a falar sério e levar a sério a tragédia da insegurança pública no Brasil, ou será pelo menos mais digno furtar-se a fazer coro à farsa.

terça-feira, 23 de novembro de 2010

Entrevista a Felipe Pontes da revista eletrônica "Saraiva Conteúdo"


O PROJETO ESTÉTICO DE LUIZ EDUARDO SOARES   
Por Felipe Pontes
Fotos de divulgação
O apartamento em São Conrado, bairro de classe alta do Rio de Janeiro, não fica virado para o mar, mas de fundos, com vista privilegiada para a favela da Rocinha. Solícito, Luiz Eduardo Soares atende em casa. Emendou uma entrevista atrás da outra. De uma sobre assuntos gerais, em especial o futebol, dada a um colega blogueiro da Polícia Federal, embarcou praticamente sem interrupção na conversa com o Saraiva Conteúdo, dessa vez sobre a sua trajetória política e literária. Pioneiro no estudo das políticas de segurança pública no Brasil, o antropólogo escreveu quinze livros, entre eles o best-seller Elite da Tropa (Objetiva) e, o mais recente, Elite da Tropa 2 (Nova Fronteira) - ambos como co-autor.
Desde 1974, a ocupação principal de Soares é a pesquisa e o ensino em ciências sociais. Lecionou antropologia na Unicamp no início dos anos 1980 e durante 15 anos foi professor de ciência política no respeitado Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj). Hoje coordenada a especialização em segurança pública da Universidade Estácio de Sá e dá aulas na pós-graduação em direitos humanos e ciências sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Mas na sala de estar forrada de livros, há quase nada de bibliografia teórica. A grande maioria dos títulos é de ficção, um vasto acervo de literatura nacional e estrangeira.
Uma das prateleiras, inclusive, é dedicada aos romances gráficos, as histórias contadas em quadrinhos. “O primeiro artigo que eu publiquei nos anos setenta foi sobre a linguagem em quadrinhos - na época isso estava ligado a poema-processo, aos concretos, havia um interesse na valorização de novas linguagens”, diz ele, que teve sua primeira formação na área de letras e prepara para o início de 2011 o próximo livro, uma não-ficção sobre a trajetória de um famoso traficante internacional de drogas, cujo respectivo graphic novel, desenhado pelo artista gráfico Marcus Wagner, será lançado no segundo semestre do ano que vem.
O segundo artigo publicado por Soares, ainda em 1974, foi sobre a criação de Asdrúbal trouxe o trombone, importante grupo de teatro de vanguarda do qual fez parte. Fica evidente assim um traço característico de sua competência como intelectual: ao mesmo tempo em que procura se envolver na linha de frente de um pensamento prático-político realmente efetivo, se empenha com a mesma desenvoltura no campo da cultura e da arte.
Já comprovada por crítica e público a capacidade dos discursos tanto do livro (Elite da Tropa) quanto do filme (Tropa de Elite) em despertar discussões para além do mero entretenimento, Soares nos expõe um projeto consciente de militância em um plano simbólico, de intenção artística e política. Desde o início ele se dispôs a construir uma tetralogia da violência urbana, dedicada a matizar os estereótipos dos diferentes personagens envolvidos nesse cenário através de testemunhos numa linguagem narrativa, a qual um público vasto fosse capaz de compreender, e vivenciar uma empatia com os dramas humanos descritos ali. “Veja que curioso, do ponto de vista de vários filósofos, psicólogos e estudiosos do fenômeno da ética, o que constitui a moralidade como campo é a capacidade de deslocamento imaginário para a posição do outro”, ensina Soares. Essa estratégia discursiva é o principal ponto de contato entre as obras audiovisual e escrita, já que em termos de conteúdo, apesar de o Capitão Nascimento (Wagner Moura) ilustrar a capa do livro, os dois trazem tramas independentes.
Elite da Tropa 2 (Nova Fronteira) tem como narrador um ex-delegado da Delegacia de Combate ao Crime Organizado da Polícia Civil, a Draco. Condenado por um acidente a permanecer em uma cadeira de rodas, ele encontra alívio para sua imobilização em escrever os casos de violência operados pela milícia no Rio de Janeiro. Engana-se quem se precipita em classificar o livro apenas como uma espécie pulp fiction de ação. Por meio até de uma perfil no Twitter, o narrador denuncia o lado podre das polícias, talvez uma referência de Soares ao romance epistolar A Nova Heloisa (Unicamp), de Rousseau, o qual ele fez questão de citar em nossa conversa como fundamental para o surgimento do que hoje compreendemos como direitos humanos.
Funcionando como um catalisador, Soares mobilizou uma série de personalidades um tanto diferentes em prol da realização de seu projeto estético-político. Começou em 2005 com Cabeça de Porco (Objetiva), escrito em co-autoria com MV Bill e Celso de Athayde, cujas visitas a comunidades pobres de diferentes metrópoles brasileiras, entrevistando jovens cooptados pela vida criminosa, resultaram também no chocante documentário Falcão – meninos do tráfico (disponível na íntegra no YouTube). Partiu então para explorar o ponto de vista do policial, lançando em 2006, ao lado dos policiais militares André Batista e Rodrigo Pimentel, o primeiro Elite da Tropa (Nova Fronteira). A seguir, explorou o universo do judiciário em Espírito Santo (Objetiva), escrito em parceria com o juiz e ex-secretário de segurança capixaba Rodney Rocha Miranda em 2009. E saiu agora a pouco o Elite da Tropa 2, em que retoma a perspectiva dos agentes de segurança em situações ficcionais largamente inspiradas em acontecimentos verdadeiros.

Do “imperativo da militância política para a juventude consciente” durante a ditadura militar e da experiência como ex-comunista, Soares herdou a gana de transformar o conhecimento adquirido nos laboratórios de ciências sociais em conseqüências éticas. Quando os governos de esquerda que sucederam o período autoritário se predispuseram a acolher ideias inovadoras, o antropólogo, que já desenvolvia um trabalho no Núcleo de Estudos da Violência do Instituto Social de Estudos da Religião e na ONG Viva Rio, acabou convidado a redigir o plano de segurança pública da campanha de Anthony Garotinho, candidato da coalizão de esquerda eleito governador do Rio de Janeiro em 1998. Considerado um dos responsáveis pela vitória, Soares foi nomeado Secretário de Segurança e teve a oportunidade de por em prática as ideias propostas no projeto, como o programa Delegacia Legal, uma tentativa de controlar a anarquia institucional vigente, e o Mutirão Pela Paz, predecessor das atuais UPP´s. Foi demitido do cargo em menos de dois anos sob o pretexto banal de haver defendido o cineasta João Moreira Salles no caso da suposta mesada ao traficante Marcinho VP. Logo depois o ex-deputado estadual Álvaro Lins foi nomeado chefe da Polícia Civil, abrindo espaço para a chamada “banda podre”. Em agosto deste ano, Lins e Garotinho foram condenados pela Justiça Federal por formação de quadrilha e corrupção passiva.
No mesmo dia de sua demissão, Luiz Eduardo Soares foi acolhido pelo programa de estudos internacionais da Fundação Ford e se exilou voluntariamente nos Estados Unidos como professor convidado da Columbia University. Lá, escreveu Meu casaco de general (Companhia das Letras), livro que inaugura sua trajetória literária focada na violência, uma avaliação em primeira pessoa sobre os acertos, dificuldades e alternativas para a ainda necessária reforma policial. O próprio antropólogo considera o livro um dos primeiros no Brasil exclusivamente dedicado a discutir não uma espécie de sociologia da violência, mas a expressão “política de segurança pública” como um tema em si.
Quando um chamado ‘bonde’ de traficantes fortemente armados, que retornavam de uma festa no Vidigal para a Rocinha, acabou se confrontando com a polícia nas ruas de São Conrado em plena manhã de sábado de 21 de agosto deste ano, resultando na invasão do hotel Intercontinental, Luiz Eduardo Soares foi o homem que relatou o que acontecia, praticamente em frente ao condomínio onde mora, no calor da hora, ao vivo pela rádio CBN. O episódio serve para ilustrar a posição de referência do antropólogo quando se fala em violência urbana. Nos trechos da entrevista ao SaraivaConteúdo transcritos abaixo ele conta sobre o surgimento dos dois Elite da Tropa e nos dá uma aula sobre as verdadeiras intenções de sua obra literária.

Como você acabou se dedicando mais a literatura?
Luiz Eduardo Soares. Eu sou professor universitário há 35 anos na área de antropologia e ciência política. Mas eu me formei em literatura na graduação, então sempre mantive um interesse grande e uma proximidade com amigos dessa área, com a produção, e sempre acompanhei a crítica literária. Isso sempre esteve presente. Em 1996 eu escrevi um romance, chamado Experimento de Avelar (Relume Dumara). Depois, nos anos 2000, eu comecei a ter a oportunidade de experimentar a combinação da minha formação acadêmica com esse interesse por outras linguagens, e acho que isso que foi importante para mim.  Eu me aproximei do tema segurança pública e violência nos anos oitenta, porque era já um tema muito importante no Rio e havia não muita gente envolvida nisso. Isso como pesquisador, estudioso, escrevendo sobre o assunto e etc., o que acabou me levando para o governo, primeiro como consultor, depois até assumindo responsabilidade de gestão. Um caminho mais ou menos natural.
Quando eu tive a oportunidade de mergulhar na prática da gestão e atuar por dentro dos bastidores, e como tive a vida inteira o olhar de pesquisador, de observador, assim como o interesse em escrever usando outras linguagens além da acadêmica, houve essa confluência. Eu tomei a minha experiência nos governos, assim como tomava antes as pesquisas, como base para a elaboração de trabalhos e aí começam esses textos que me aproximam de outras linguagens.
Como você conheceu os colaboradores de Elite da Tropa 2?
Soares. Os primeiros que eu conheci foramo Rodrigo Pimentel e o Cláudio Ferraz. Quando eu estava no governo em 1999, convidei o Cláudio para dirigir a reforma da perícia e nos tornamos ali amigos. O Pimentel se tornou um personagem público através do documentário Notícias de uma guerra particular (João Moreira Salles, 1999). Ele se destacava ali e o que ele disse deu nome ao filme e abriu perspectiva de um certo tipo de entendimento. Ele é um sujeito muito inteligente e muito corajoso. E depois que falou com o João, nunca parou de falar e colecionava punições. Ele não queria ir muito longe na carreira porque não estava disposto a negociar sua liberdade e não aceitava a censura. Por isso, volta e meia era preso. Quando fui para o governo em 1999 ele deu uma entrevista de página inteira ao Jornal do Brasil me criticando e criticando a política de segurança pública. Quando eu li, pensei “puxa, esse rapaz é sensacional”. Porque o problema não é concordar ou discordar. O problema é discutir com inteligência, mostrar interesse por aquilo e ser capaz de dialogar. Isso é extraordinário. Se todos os policiais fizessem esse esforço de reflexão e crítica, estaríamos num outro mundo. Isso á maravilhoso. Ele foi preso. Naquela mesma noite falei com o comandante geral da PM que eu queria que ele não só fosse libertado como viesse trabalhar comigo, eu ia convidá-lo. Entre a cela e coordenadoria, ele topou e nos tornamos amigos.
Como surgiu a ideia de escrever o Elite da Tropa?
Soares. Surgiu em 2002, no projeto da tetralogia. O primeiro seria fazer o mergulho com Celso [de Athayde] e [MV] Bill, o Cabeça de Porco (Nova Fronteira), e o segundo no universo da polícia, do BOPE e tal. Lançamos o Cabeça em 2005 e tive que começar logo o outro. Liguei para o Pimentel e falei “vamos fazer?”, e ele sugeriu o Batista também. Eu conhecia o Batista de fato desde 2002. Ele já era do BOPE e trabalhava na segurança pessoal do secretário [de segurança]. O encontrei várias vezes, uma pessoa simpática, tinha ótimas informações e tive uma boa impressão sobre ele. E o Pimentel falou “chama o Batista também, porque está querendo nos ajudar no filme que o Padilha está querendo fazer, não um documentário como pensou de início, mas uma ficção com base documental sobre a policia. O Padilha está chamando o Batista também porque ele tem uma história pessoal incrível”, e tal. Fomos almoçar com o Zé [Padilha] e ele já estava trabalhando na primeira versão do roteiro e já tinha o nome Tropa de Elite, aí eu falei do meu projeto e disse “bom, vamos fazer, as fontes podem ser as mesmas, isso pode ficar interessante e o nome vai ser Elite da Tropa, vamos citar, vamos fazer dessa maneira, mas com autonomia”. O projeto que eu apresentei à editora Objetiva em 2002 previa justamente isso, outro livro comigo e mais duas pessoas, envolvidas no universo em questão, como autores. Então nasceu assim, desse projeto de 2002 e dessa relação antiga com o Pimentel, como contei.
E como se deu esse processo de criação coletivo?
Soares. Em nenhum caso eu analisaria os outros dois, ou agiria como um intelectual que estuda o relato dos outros dois, não seria essa a relação. No Cabeça de Porco, por exemplo, cada um de nós assina seus próprios capítulos e eu não analiso nenhum deles, nós dialogamos, trocamos ideias mesmo, é um livro composto, um mosaico. No Elite da Tropa, a mesma coisa, eu escreveria todo o livro, mas faríamos esse mergulho numa perspectiva narrativa e as histórias viriam de nós três, de fato as nossas vivências. E ali é muito claro, as vivências, depoimentos, coleta de depoimentos dos dois [Batista e Pimentel] estão lá na primeira parte. A minha história, o meu depoimento ficcionalizado, está na segunda parte, mesmo que eu escrevesse todo o livro, porque ali a metodologia teve que ser diferente.
Então desde sempre a ideia foi fazer livros de ficção?
Soares. Não, nossa ideia era contar a verdade, a realidade daquilo que havíamos vivido, porque nós achávamos que a população de uma forma geral não tem a menor ideia do que acontece realmente. E nisso a arte cumpre papel crucial. Segundo o filósofo já falecido Richard Rorty, meu mestre no pós-doutorado que fiz nos Estados Unidos e dono da citação na epígrafe de Elite da Tropa 2, nós  precisamos hoje não mais de tratados filosóficos, como no século XVIII, para demonstrar a superioridade da paz em relação à guerra. Nós precisamos de jornalismo, reportagem, etnografia, romance, literatura, cinema e documentário, precisamos, em suma, das narrativas. Porque é preciso relatar experiências de tal modo que a empatia possa ser vivenciada. Isso é muito mais forte do ponto de vista da efetividade do que o puro esforço reflexivo racional. Se você der a alguém um tratado filosófico kantiano mostrando a superioridade da paz perpétua, você pode eventualmente persuadir dois ou três. Da persuasão à emoção, que conduz à prática, há intervalos e brechas e hesitações, e dificilmente você irá além do universo dos filósofos, das pessoas capazes de decodificar aquela linguagem particular. Mas se você apresentar uma narrativa tendo um indivíduo como referência – seja lá qual for o tema, um tsunami, a peste bubônica, a pena de morte –, a capacidade que o texto terá de chegar à prática do outro, passando pela sua persuasão e suas emoções, conduzindo-o a uma nova ética, uma nova ação, serão muito maiores, as chances serão muito maiores de você ser muito mais efetivo.
Se você conta uma história de vida individual, gerando condições, pela narrativa, de trazer o leitor para as emoções vivenciadas pelo locutor, pelo narrador, pelo personagem, aí você abre uma outra ponte existencial, psicológica, simbólica extraordinariamente mais forte. Eu acredito nisso. Não falo isso para subestimar o trabalho acadêmico, que é insubstituível, evidentemente, mas para justificar a necessidade de uma abordagem que amplie, que crie, que trabalhe com outras linguagens e perspectivas. 

sábado, 25 de setembro de 2010

Mistérios


Capítulo do livro Elite da Tropa 2, de Luiz Eduardo Soares, Cláudio Ferraz, André Batista e Rodrigo Pimentel, que estará nas livrarias a partir do dia 8 de outubro, editado pela Nova Fronteira.
            Os nomes dos personagens foram mudados, mas a história é estritamente verdadeira.
***

Mistérios

            Alguns fenômenos são misteriosos e permanecem enigmáticos ao longo dos anos. Quanto mais pensamos neles, menos os compreendemos. No mundo policial, em particular no campo de batalha e no universo do BOPE, não é diferente. É o caso de Lamartine Feitosa, cabo da PM, ex-companheiro, homem de valor, valente e leal, que se converteu e pediu afastamento do BOPE. Preferiu retornar a unidades convencionais, nas quais, também por opção, têm se empenhado em tarefas administrativas.
            Outro dia visitei o Queiroz, subcomandante de um batalhão da zona norte, velho amigo. No meio da conversa apareceu o Feitosa. Bateu na porta, entrou cauteloso, sorriso sereno. Fiz uma festa quando o saudei. Ele parecia emocionado com o reencontro. Modesto, não se estendeu. Perguntou se podia providenciar um cafezinho, uma água, e passou ao subcomandante a papelada burocrática do dia.
— Com licença. Foi um prazer rever o senhor, capitão.
Prestou continência e saiu como o vento pela fresta da porta.
Queiroz confirmou que Feitosa agia sempre assim, desde que chegou ao batalhão. Furtivo, poucas palavras, educado, gentil, prestativo ao extremo, sem ambições aparentes, atencioso com todo mundo, mas evasivo. Fazia tudo para manter-se longe de ações externas, sobretudo da rotina de incursões e enfrentamentos.
— Na dele, sempre — disse Queiroz.
Mesmo assim, a tropa o respeitava como guerreiro. Afinal, tinha passado pelo BOPE e saiu porque quis. Seu conceito nunca havia sido questionado. O prestígio entre os caveiras estava intacto.
Queiroz completou:
— Não fala do passado no BOPE. Não gosta. Quando a gente pergunta sobre alguma ação de que participou, desconversa. Quando os colegas contam alguma história dos confrontos, se afasta. Disfarça e se afasta.
***
            Eis o que aconteceu — e que não explica a mudança, mas a antecede.
            Acostumado à rotina do BOPE — guerra à noite, descanso de dia, deslocamentos via transporte público —, Feitosa cochilava, no ônibus, voltando para casa, quando dois rapazes anunciaram um assalto. Armado e portando documento de identidade policial, sabia que era matar ou morrer. Instintivamente, sacou a pistola, ergueu-se no banco e atirou nos ladrões, que reagiram tarde demais e sem precisão. Os dois bandidos morreram, mas, felizmente, ninguém mais se feriu. A técnica o salvou, ele disse muitas vezes nos dias e nas semanas seguintes. O treinamento do BOPE o salvou. Agiu como guerreiro eficiente, veloz e preciso, graças à experiência. Feitosa repetia o que nós todos gostávamos de sublinhar: nenhuma outra tropa urbana do mundo tinha o privilégio de praticar, como nós, diariamente, as táticas de combate antiguerrilha. Por isso, éramos os melhores. Por isso, até os israelenses vinham aprender conosco.
            Até aí, nada de novo. Nada excepcional. O episódio apenas demonstrava a perícia de nosso companheiro. Mas não foi assim que ele vivenciou a situação. Por algum motivo, a cena mudou sua vida. Mudou sua maneira de ver a profissão, seu jeito de falar, sua atitude. Se isso tivesse acontecido com qualquer pessoa, eu entenderia. Matar pode transformar muita coisa na cabeça de um indivíduo. No entanto, para Feitosa, matar era parte de seu ofício. Era parte de seu cotidiano. Por que aquelas mortes foram tão especiais?
            Saindo do gabinete do Queiroz fui tomar um café com Feitosa. Senti que ele estava desconfortável, talvez porque eu arrastasse comigo um passado do qual ele participara, que era também seu e que ele preferia esquecer. Por isso, escolhi temas neutros. Falei de minha família, futebol, coisas assim. Ele foi se desarmando. Se eu bebesse, o convidaria para um chope. Ele teria me dito que tinha parado de beber. A religião proibia. Feitosa tinha se convertido. Era evangélico. Isso eu já sabia. Como estávamos sozinhos e a conversa nos aproximou, mostrei curiosidade por sua conversão. Quis saber como ele tinha descoberto a fé. Ele não se furtou a me falar de suas crenças. Por essa via, encontrei uma brecha para mencionar o episódio e lhe perguntei se o caso tinha sido decisivo ou tinha pelo menos contribuído para sua transformação espiritual.
A resposta de Feitosa não saciou minha curiosidade. Na verdade, me deixou angustiado. Fiquei com a sensação de que o campo vasto de minha ignorância ia se ampliado na medida em que as palavras do velho camarada pareciam fazer sentido.
Ele disse mais ou menos o seguinte:
— Quando atirei nos homens dentro do ônibus, eu estava lá e eles estavam lá. Havia mais gente, gritos, medo. Mas nós três estávamos lá. Um diante do outro. Fui eu que atirei no primeiro, capitão. Eu, Lamartine, o homem, a pessoa. Fui eu que atirei no segundo. Entendeu? O primeiro caiu pra trás. Morreu na hora. O segundo tombou de lado, emborcou, e sangrou muito antes de morrer. Duas vidas, capitão. Eram dois jovens. Olharam pra mim. Eu olhei pra eles. Nós nos olhamos.
— Você morreria se não atirasse, Feitosa. Tem dúvida de que eles teriam matado você?
— Teriam matado, sim. Mas não foi o que aconteceu, porque atirei primeiro. Quem matou fui eu.
— Ainda bem, Feitosa. Ou você está arrependido? Acha que errou? Não deveria ter atirado?
— Não errei, não.
— Pois é, legítima defesa.
— Eu sei.
— Então, por que isso perturba tanto você?
— Porque está errado fazer a coisa certa.
Acho que ele notou que fiquei pasmo. Tanto que retomou a palavra:
— Capitão, ouve. Presta atenção.
Feitosa repetiu o que tinha dito, com as mesmas palavras. Que os três estavam no ônibus, etc.
Então me calei. Desisti de entender, mas intuí que havia alguma coisa no que ele dizia, alguma coisa que tocava a verdade. E logo o presságio de que essa verdade se revelaria desapareceu sem deixar rastro. Voltei a me sentir perdido nesse emaranhado.
Um tempo depois, em que cozinhamos o silêncio em fogo baixo, ele acrescentou:
— Nas incursões, capitão, vestíamos uniforme.
E daí? pensei. Que diferença isso faz?
Feitosa prosseguiu:
— Nos confrontos, éramos partes de uma engrenagem.
OK, eu pensei. Tudo bem. E daí? Sem organização é impossível combater. Somos uma máquina. Máquina de guerra. Um mecanismo do Estado armado para matar. Qual a diferença? Uma pistola municiada funciona do mesmo jeito. O projétil disparado mata da mesma forma. A guerra e a legítima defesa são razões suficientes para justificar o tiro fatal. As situações se equivalem? Onde está a diferença?
O velho companheiro concluiu:
— Não estávamos sozinhos, capitão, mesmo que, fisicamente, em algum momento da ação, cada um de nós estivesse sozinho. Quem agia era a equipe. A vontade que a gente encarnava era da corporação. O cabo Feitosa participou de muitas operações e matou em combate. Eu nunca estive em nenhuma operação. Eu, Lamartine, nunca tinha matado ninguém.

sábado, 18 de setembro de 2010

Bolcheviques e gambás na carnificina dos dossiês

          A manipulação de dossiês é uma prática repugnante e é bom que se torne alvo da repulsa coletiva. Pena que a mídia tenda a focalizar o problema apenas em campanhas eleitorais. Houve, sim, é verdade, reportagens importantes sobre manobras clandestinas, politicamente orientadas, alimentadas por dossiês fabricados ad hoc para atingir a reputação de pessoas honradas. Mas são raras essas matérias, enquanto a prática, infelizmente, é contínua. Eu mesmo fui atingido por esse tipo de arma desleal, em que o acusador esconde sua identidade e, portanto, sua motivação, evitando, assim, responder por seus atos, comprovar as acusações e responsabilizar-se pelos eventuais efeitos caluniosos. Curioso que, em meu caso, o dossiê, sua autoria e os interesses inconfessáveis escondidos pela máscara do anonimato não foram objeto de interesse por parte da mídia, salvo exceções. Pelo contrário, tomaram gato por lebre, morderam a isca e ignoraram solenemente a forma pela qual as "informações" chegaram às redações de revistas e jornais. Em poucas horas eu me tornei nepotista, ainda que ninguém tivesse parado para verificar se as acusações procediam ou não. Pois elas não procediam, como se constatou posteriormente. Mas era tarde. Estava ali, não na oposição ao governo, mas no coração mesmo do governo, a fonte dessa prática facistóide.
          Interessante observar como se inverteram os valores. A mídia perdeu a oportunidade de descobrir o ovo da serpente instalado no centro do poder, porque preferiu os fogos de artifício do escândalo. E o partido no poder, o PT, ao qual eu pertencia, em vez de tratar o episódio com dignidade, compostura, decência e um mínimo de respeito pelo acusado --cuja longa trajetória cidadã e profissional era conhecida e respeitada-- optou por desqualificar a vítima do dossiê calunioso e covarde --nesse caso, eu.
          Como se deu a desqualificação? Pela manhã, ao telefone, eu disse ao então presidente do PT, Genoíno, que não era necessário que ele me defendesse, porque disso eu mesmo trataria, mas que ele tinha o dever de afirmar, publicamente, que o partido não aceitava o uso de dossiês apócrifos como meio de ação política e que, portanto, se viesse a ficar provado que os autores eram militantes do PT, eles seriam punidos nos termos determinados pelas normas internas.
          Algumas horas depois, o deputado Genoíno, que eu e boa parte do país aprendêramos a admirar, deu uma entrevista coletiva em que me chamou de "gambá", porque espalhava mau-cheiro para ocultar-me. Solicitei minha imediata desfiliação. Ao cargo eu já havia renunciado. Seguiram-se quase dois anos de perseguição stalinista, durante os quais meu nome foi incluído no index governamental. Governos que me convidaram a atuar como consultor foram informados de que não receberiam verbas federais para projetos na área de segurança se eu fosse contratado. Um querido amigo, que ainda mantinha boas relações com Genoíno, foi procurá-lo, em Brasília, para esclarecer a situação e, quem sabe, separar disputas, divergências e até atritos pessoais, de políticas de Estado, como o repasse de recursos. A resposta que colheu foi curta e grossa: se meu amigo quisesse trabalhar na área, que se afastasse de mim. Eu não era um gambá, mas, pela manobra stalinista, fui transformado no bicho pestilento.
          Como é que o quadro mudou? Quando mandei recados pela mídia de que estava disposto a contar minha história, publicamente, sem poupar personagens e práticas contra as quais sempre me batera, mas que terminaram por me derrotar. Somente recuaram do cerco que impuseram a meu nome quando perceberam que eu não me deixaria acuar e que teria energia e coragem política para sair das cordas e partir para o ataque. Por justiça, registro minha gratidão a Tarso Genro e Lindberg Farias, que se recusaram a jogar o jogo da estigmatização e não se furtaram a estabelecer parcerias e valorizar minha contribuição.
          Por isso, digo aos amigos do twitter e do blog: o uso de dossiês é uma peste muito mais comum e corrosiva da democracia do que as escaramuças eleitorais sugerem. A direita sempre trabalhou com essa arma anti-democrática. Mas a esquerda que chegou ao poder adotou essa repulsiva tradição como se fosse uma herança bendita. No fundo, isso mostra que os velhos sonhos de uma sociedade regida pelo respeito aos direitos humanos foram para o espaço, nos setores comprometidos com a esquerda autoritária. Nesse campo, triunfou o utilitarismo mais rastaquera, segundo o qual os fins justificam os meios. Os arautos dessa esquerda não dizem, mas pensam: às favas os escrúpulos burgueses; às favas o moralismo pequeno-burguês; às favas as normas institucionais. A vitória tudo justifica, tudo redime. Pisemos o pescoço do companheiro da véspera. Exponhamos o aliado ao ultraje e ao linchamento público. Assassinemos reputações. O poder estenderá sobre o passado o manto do oblívio. Ao indivíduo, cujo único poder é a dignidade de sua biografia, resta prestar seu pequeno testemunho para que os netos não lhe cobrem a omissão.