--Sobre o livro A Dona das Chaves, uma mulher no comando das prisões do Rio de Janeiro, de Julita Lemgruber, com Anabela Paiva (Editora Record, 2010).
--Originalmente publicado no caderno Prosa e Verso (O Globo), em 18 de dezembro de 2010
--Originalmente publicado no caderno Prosa e Verso (O Globo), em 18 de dezembro de 2010
Há muito tempo Julita Lemgruber nos devia um relato extenso sobre sua vasta experiência no sistema penitenciário. Ela já escrevera uma obra acadêmica, Cemitério dos Vivos, sobre o presídio feminino, Talavera Bruce. Mas faltava a narrativa mais ampla, que incorporasse o período em que esteve à frente do Sistema Penitenciário do Estado do Rio de Janeiro. Um relato que fosse também memória e testemunho da mulher que se afirma como agente político de transformações, sem renunciar à responsabilidade da gestão; da militante dos direitos humanos que hesita, chocada com as condições a que o Estado submete os presos, mas resiste ao desespero de seguidas frustrações e prossegue, obstinada, para reduzir danos, violações, sofrimentos e ilegalidades.
O livro é notável. Flui numa linguagem envolvente, precisa e emocionante, graças à parceria com a jornalista Anabela Paiva, ourives da palavra e madura no tratamento dessa matéria espinhosa e árida, a segurança pública, que ela domina como poucos. A obra será mapa imprescindível para quem quiser conhecer, por dentro, o mundo esquecido do cárcere, em nosso passado recente. Escrevi passado e vacilo: é de presente que se trata, um presente carregado de ruínas, espécie de inconsciente social fora do tempo, habitando uma cavidade da história. Um presente que, embora ostensivo e eloquente, não se deixa verbalizar. Dor coletiva recalcada e sem luto, que retorna para assombrar o sono da cidade. Imagem invertida da virtude sem a qual não seria possível o maniqueísmo, em cujos termos o mal é o Outro. Passado enraizado em cada um de nós como destino atávico --compulsão à repetição. Filme que todos já vimos: masmorras escuras, úmidas, cheirando a ossos incinerados e dejetos. Com horror descobrimos que, sim, são humanos os restos em andrajos que esquecemos lá no fundo desses buracos da razão e da memória. São animais expiatórios que frequentam o limiar. Cometeram barbaridades, alguns? Pois agora, esse quadro dantesco das penas, o presídio, é produzido por nós. A barbárie, agora, é nossa. Melhor não olhar. Melhor meter os cárceres pestilentos no cofre e jogá-lo ao mar. Mas a dona das chaves mergulha, abre de novo cofre e feridas para que, no espelho do Outro, nos espantemos com a intensidade da violência de que somos capazes --nós, os sãos, homens e mulheres de bem, governos de esquerda, cidadãos democratas. Por isso, Julita passaria a dedicar sua vida à defesa de penas alternativas à privação da liberdade para autores de crimes não violentos.
Há o lado solar disso tudo. A vida que pulsa nas prisões, a generosidade de alguns guardas, técnicos e gestores, a persistência de militantes, a vocação saudável de presos que resistem à moenda material e espiritual. Contando sua trajetória nos dois governos Brizola (1983-1986 e 1991-1994), Julita descreve a saga de um bando de sonhadores humanistas, que abandonaram o conforto do debate ideológico, arregaçaram as mangas e foram à luta para mudar a realidade vergonhosa de brutalidade e corrupção. Sem paternalismos, mas com sensibilidade e respeito, usando a legalidade como bússola e limite, sem confundir o necessário rigor com a violência arbitrária, sem misturar disciplina com terror e humilhação. Por outro lado, o grupo admirável não passava de um Exército de Brancaleone, lutando até o limite de suas forças, ante a indigência dos recursos. O grande paradoxo devastou ilusões: os governos Brizola, que ergueram a bandeira dos direitos humanos, não foram muito diferentes dos outros, na recusa a sustentar com investimentos materiais os valores cultuados nos discursos. Coube a esse grupo de devotados e destemidos fazer das tripas coração para estreitar a distância entre a palavra governamental e o compromisso prático. Mais uma vez ficava claro que presos e presídios não têm vez. Mas os Brancaleones fizeram a diferença, a despeito de tudo. A saga da mulher cuja lucidez só é suplantada pela coragem valerá para a sociedade brasileira como exemplo e inspiração.