Assisti a montagem emocionante de um texto notável, escrito por Hélio Sussekind: “Recordar é viver” (dirigido por Eduardo Tolentino, com excelentes atores, entre eles Suely Franco e Sérgio Brito, cujos desempenhos marcarão época). Está em cartaz no Rio, no CCBB, e o preço do ingresso é mínimo (R$ 5,00). Hélio teve a coragem de voltar a um tema forte, matricial, arcaico e permanente: família.
Crescer em família, amar e odiar em família, calcinar os nervos em família, agonizar em família. A fonte da vida é também sepulcro; horizonte é limite; suporte para o salto é a âncora que enraiza, estabiliza, protege, firma as bases na turbulência, mas também serve de grilhão. A família, ninho quente e amoroso, pode ser a arena da violência, o festival de tripas e sangue onde gladiadores da impotência se imolam. O leite materno instila vida mas pode envenenar. Filhos são aposta no futuro, na renovação, no recomeço libertador e criativo, mas eventualmente também podem vir a ser a projeção no futuro do inferno, a extensão do cativeiro, a sentença do vampiro, que é a mais cruel, porque condena à imortalidade. Triunfo do mal sobre a morte: dor e patologias para sempre. Reprodução pode ser a metástase de vidas-calvário: desamparo, pequenas tiranias, desertos e bunkers pretensiosos, inúteis e solitários.
Fonte do novo que instaura a diferença no contínuo da história, a maternidade e a paternidade, gerando mais um ser humano, correm o risco de acionar o mecanismo da repetição. Sim, a repetição garante a sequência da vida e apazigua nossa inquietação, balizando, com as molduras imaginárias da rotina e as armaduras da disciplina, a incerteza que marca nosso destino. A repetição remete a promessa assustadora da mudança à mansidão do mesmo, ainda que o mesmo sangre, ainda que o mesmo cave em nós feridas atrozes com suas tenazes atemporais. Por outro lado, se não remetermos o que vivenciamos no aqui e agora ao que fomos ou supomos ter sido e vivido, a precária experiência da identidade escoa e nos esvazia, plasmando em nós o epíteto de T.S. Elliot: seremos feixes ocos de elmo, escorados uns nos outros, sem memória de nós e, portanto, sem esperança.
O que a reiteração de neuroses arquetípicas faria de nós?
Levar adiante o fardo do passado esmaga o futuro, se não soubermos decifrar o enigma familiar, as tramas da origem. Repetiremos como farsa a tragédia familiar arcana, mas a farsa fará de seus personagens, nós inclusive, meros vestígios da tragédia, restos e rastros de obsessões alheias, sintomas evanescentes de frustrações mofadas.
Por isso, o filho problemático da peça de Hélio Sussekind concentra em si, em sua sina perturbada e perturbadora, a consciência do jogo que jogamos, a lucidez difícil de suportar. Em sua obscuridade, em seu ócio incandescente e opaco, que calcina, promete as cinzas, pressente e prenuncia a morte, ele insiste em sobreviver. Atravessa as noites, peregrino, cruzando desertos intermináveis para fertilizar a superfície gelada com o fogo alucinatório do desejo, a vontade de escrever, a evocação de Pierre Ménard, Macbeth e Sheakespeare, personagens de seu Santuário, repertório de sua linguagem cifrada. A loucura do filho que não ousou a prodigalidade (não retorna porque não sai de casa e do quarto-caverna) pisca o olho esquerdo para o inconsciente da platéia.
Risca os fósforos, indefinidamente, até a exaustão física que o faz adormecer, porque não aceita (abençoado por David Hume, diria um filósofo) render-se à suposição de que o futuro será a mera reedição do que foi. O filho não tem fé na indução, porque sabe que o futuro é imprevisível. Ele arrisca o próximo teste sobre luz e trevas, riscando fósforos, até o extremo de suas forças, o que lhe permite tocar com os dedos extenuados seus próprios limites. Acende e apaga o momento, abolindo ilusões da linguagem, acendendo e apagando a comunicação. Indução é só retórica, fumaça que enleva e intoxica.
Riscando fósforos, noite após noite, o filho estranho queima pontes com os outros e consigo mesmo. Implode os nexos entre passado e futuro. Exercita a saída da casa-Ithaca e se lança na aventura da desmesura, na desventura de mares e monstros, sereias e cantos enganadores, máscaras e fetiches da identidade e do sentido. Ali, em seu cantinho modesto e desarrumado, o filho-problema, em sua aparente imobilidade, realiza os 12 trabalhos de Hércules, a viagem de Ulisses, o destino epopéico do filho pródigo, resistindo, por não sair, a voltar. Resistindo à volta, adia o reencontro com a casa-Ithaca, a mãe, o mesmo, a unidade que, por não se realizar como relação amorosa de desiguais, por esgotar-se na simbiose com o mesmo, representa a morte. Ficar é, nesse caso, uma estratégia de sair mais radicalmente. Só há salvação no apegar-se rude (porque a contrapelo) à diferença. Entretanto, essa via conduz ao desfiladeiro, ao silêncio e à loucura.
O pai seria um apoio fundamental para a libertação do ardil, mas não é vigoroso o suficiente para abrir picadas e apontar sendas alternativas. Generoso, oscila entre o cumprimento de seu mandato paterno e o lugar de irmão mais velho, cúmplice, complacente, tudo tolerando até apagar os limites que lhe dariam contorno definido. De fracasso em fracasso, contempla o presente como retratos do passado. Gira sobre si: piruetas sobre o abismo. Personifica o eterno retorno. Inscreve a morte no curso da vida e abençoa o filho que se afoga, enternecido com seu esforço desesperado, aplaudindo, orgulhoso, a vã coreografia do caçula querido.
A estratégia do filho-problema --riscar fósforos como quem risca o papel em branco na expectativa de flagrar a cegueira que virá, inexorável, ou na expectativa de flagrar o vazio criativo que desnudará o vazio do sujeito, sua negação, a morte-- é inútil e ineficiente. Nem o sujeito está vazio, nem Édipo será punido para expiar a culpa. Todavia, a estratégia é, sim, extraordinariamente eficiente quando se trata de surpreender e mobilizar os que buscam, num programa de sábado à noite, apenas a aragem suave da diversão e o sopro débil da beleza cênica. Com delicadeza rascante, Hélio Sussekind nos oferece as circunvoluções enfeitiçadas e fascinantes de seu ciclone imóvel.
A platéia vibrou com o espetáculo, na sexta-feira em que fui assisti-lo. Riu, chorou, aplaudiu com entusiasmo. A considerar-se o que escreveu no Globo, Barbara Heliodora não gostou da peça. Pareceu-lhe repetitiva. Acho que ela não captou o espírito da coisa. A peça é sobre a repetição. Espero que a impossibilidade de ver e ouvir o que o texto sussurra entredentes não tenha a ver com as presas, garras e correntes da repetição, que esmagam e trituram, no universo da crítica, a dimensão selvagem sem a qual não há arte. Aquela dimensão que irrompe quando um filho inclassificável, falando língua desconhecida e se desviando para o quarto escuro, joga luz sobre a indigência da sala de visitas em que se fala a língua morta das platitudes e do bom gosto.
Luiz Eduardo Soares