sábado, 4 de setembro de 2010

Pornopopéia, uma obra prima.

Henry Miller sofreu todo tipo de acusação, moral e política, e foi desqualificado como autor, antes de sua consagração literária internacional. Reinaldo Moraes conta com o respaldo de antecedentes desse porte. Por isso, sua obra prima Pornopopéia (Objetiva, 2009) pode driblar o corredor polonês moralista e a insensibilidade da crítica, e conquistar, de imediato, franca aclamação. Que boa notícia. Sinal enfim positivo dos tempos. Melhor para os tempos e para o Brasil. Sintoma da qualidade de nossa crítica. Digo tudo isso a título de introdução, porque o mais importante é que você leia o livro. Nesse caso, a introdução é também reforço. Eu a mobilizo em apoio a meu entusiasmo, para que você não o atribua a uma idiossincrasia qualquer ou à minha esquisita subjetividade. E assim conquisto mais facilmente sua confiança e me vejo em condições mais favoráveis para recomendar-lhe essa leitura. Na verdade, basta estimular você a abrir esse romance genial. O resto ele mesmo faz, com seu encanto irresistível, sua força extraordinária. A grande literatura tem esse poder estranho e fascinante. Ela o exerce às vezes em tom pastel, uma elegância blasé, como um planeta indiferente à sua própria potência magnética. Outras vezes, o texto esbanja autoconsciência e arranca você do solo, pelos cabelos, pelos dentes, e o arremessa no caldeirão da gravidade.
Pornopopéia é a odisséia de um Ulisses lúbrico e decadente ou incansável e onipotente. O personagem narrador sai de sua Ithaca, uma ilha de edição, para viver narrando ou narrar vivendo, com cortes ágeis e sedutores, suas idas e vindas ao quartel general da boemia, ao templo da suruba cósmica, e ao mercado do pó, da maconha, da bebida, das mulheres ímpares. Atrapalha-se, repete, insiste, reitera, posterga, rewind, forward, pause, conversa consigo mesmo pela mediação do leitor, num esforço de racionalização crescentemente alucinatória. Manobra a adição às drogas até ser manobrado, e acabar rebocado pela tragédia que atropela seu plano de dormir e acordar, acordar e dormir, lambuzar-se de ovos com bacon, sempre taxiando na pista herdada da véspera, sempre adiando a decolagem para outro arranjo existencial, outro plano de voo profissional.
Tendo a glória se furtado quando parecia ao alcance das mãos, o narrador não espera celebrar pactos fáusticos, trocando a vida pelo cardápio de delícias rabelaisianas. Ele já celebrou o tal pacto. Faz tempo. O que não se chega a saber é se o que lemos é o relato dos prazeres que antecedem a aterrissagem no inferno ou se é mesmo do inferno que se presta o testemunho naquele tom triunfante e refratário a qualquer vestígio de auto-piedade.
Quando se muda para o balneário litorâneo, começando a fuga que não terá termo, transfere sua torre de comando e sua cabine de controle da ilha de edição situada no apartamento térreo do prédio paulistano para a paisagem exuberante, em que reina a natureza. O atleta sexual converte-se no homem do mar: a mesma energia inesgotável. Mas ao contrário de Ulisses, não se amarra ao mastro. Pelo contrário, jamais hesita em lançar-se à convocação de todas as sereias, atendendo a todos os cantos, sempre turbinado pela erva e pelo álcool, ainda que, provisoriamente, longe do pó.
A Penélope que o aguarda lhe permitirá o exorcismo de seu momento Édipo, abrindo ao narrador as portas de entrada e de saída para essa espécie de maldição do escritor: a palavra não cessa de cumprir seu destino prestidigitador e ardiloso. Ela é engodo, manipulação, dissimulação e também gozo. Do sexo à palavra, os golpes começam a ferir mais fundo os vincos das biografias sugadas para a teia do narrador. Por fim, a palavra se desdobra em fios sobre os quais já não há controle. A segunda tragédia sobrevem, e a fuga da autoria acaba emaranhada numa trama de falsificações, impondo ao narrador a renúncia da escrita, a venda do computador, a transferência da autoria sobre o fim da história e o exílio da própria consciência. O narrador deixa de sê-lo para viver o personagem além da palavra, na dobra suja de uma noite que promete encerrar a carreira, até o limite da exaustão --da palavra, do pó, do gozo, da farsa, quiça agora repetida como tragédia.
O eclipse da voz confunde-se com errância e diluição líquida de limites. O mar sem ponta, ponte ou porto. A narrativa sem ponto final. Mar, palavra e vida sem salvação. Se antes era a vida que invadia o relato, com sua respiração, seus cheiros, sua volúpia, sua corporeidade, agora é o relato que bate em retirada para que a vida reine. E o corpo. Soberano e escravo de si mesmo. Finito. Horizonte de pedra contra o desejo infinito.

Parabéns, Reinaldo. Que inveja de seu talento.

LE