domingo, 29 de agosto de 2010

Versão integral e original da entrevista de Luiz Eduardo ao repórter Rafael Lemos, para a Veja on line.

Pergunta: Queremos também saber um pouco mais sobre o seu sábado: descreva por favor o que viu, ouviu e fez enquanto o tiroteio acontecia tão perto. Você já tinha passado por alguma experiência parecida?

Resposta: Como morador, já tinha vivido a mesma situação no Cosme Velho, há alguns anos. Como profissional da área de segurança, muitas vezes vivi situações análogas ou piores. Moro exatamente no condomínio que foi invadido pelos traficantes em fuga, atirando a esmo com fuzis. Minha esposa é professora e tinha saído às 8:00 para dar aulas na UFRJ. O confronto eclodiu às 8:15, diante do portão pelo qual ela saiu. Os tiros estremecem as paredes e ecoam por dentro do corpo da gente, como se fôssemos seres líquidos e nos expusessem à corrente elétrica. Os estampidos nos remetem aos riscos dos que estão na portaria ou no pátio, ou passando nas ruas. Cada explosão pode corresponder a uma vida e isso é terrível. Difícil de descrever. Minha atitude foi me comunicar com os porteiros, entender o que acontecia e decidir o que eu poderia e deveria fazer.

Pergunta: Em três ocasiões _ como secretário de Segurança do governo Anthony Garotinho, como secretário nacional de Segurança Pública do primeiro governo Lula e como secretário de Valorização da Vida e Prevenção da Violência em Nova Iguaçu – vc teve oportunidade de formular políticas de segurança. Que avanços registrou nesses cargos, e que obstáculos enfrentou?

Resposta: Tomo a liberdade de corrigir uma informação e acrescentar outra: não fui secretário de segurança do Estado do Rio, nos 15 primeiros meses do governo Garotinho, mas sub-secretário e a partir de outubro de 1999 até ser exonerado, em 17 de março de 2000, coordenador de segurança, justiça e cidadania. A informação é relevante, porque explica os conflitos que marcaram aquele ano, entre mim e dois secretários de segurança que se sucederam no período. Acrescento às experiências referidas, a de Porto Alegre, ao longo do ano de 2001, quando atuei como consultor da prefeitura para formular e implementar um projeto piloto, no bairro então mais violento e populoso da cidade, a Restinga, preparando a criação da secretaria municipal de prevenção da violência e direitos humanos.
            Escrevi um livro sobre a experiência do Rio –Meu Casaco de General, 500 dias no front da segurança pública do Rio de Janeiro (Cia das Letras, 2000)—e vários artigos e relatórios sobre as demais. Não é fácil resumir. Para ser sintético ao extremo diria que as maiores tarefas são reformar as polícias, gerando condições de governabilidade sobre essas instituições, e, de um modo sistêmico, implementar programas preventivos capazes de interceptar as dinâmicas que reproduzem recrutamento para o crime e as práticas violentas.
            Tive o privilégio de criar com minha equipe e implantar os “Mutirões pela Paz”, a substituição das incursões bélicas às favelas por uma presença policial constante, eficiente, respeitosa, legalista, de orientação comunitária, interativa, voltada para a resolução de problemas com abordagem preventiva. Ao lado do policiamento comunitário, as favelas começaram a receber ações multissetoriais do Estado, na área social, de educação, saúde, urbanização, etc... O projeto pacificou seis comunidades em 1999, com extraordinário sucesso na redução da violência criminal e a consequente melhora nas condições de vida locais e da valorização dos imóveis em áreas contíguas. Se o leitor está pensando nas atuais UPPs, acertou. O plano era exatamente o mesmo. A diferença é que agora o governador se envolveu e mobilizou todo o governo a apoiar e engajar-se numa política integrada. Nós começamos muito bem, mas faltou esse apoio político, apesar da aprovação da mídia e da opinião pública. Quando fui exonerado, o programa foi abandonado, sob o pretexto de ser valorizado com outro nome e outra amplitude. Não aconteceu. Contudo, o desastre da volta das incursões bélicas com a suspensão do programa foi tamanho, que o governador determinou que um excelente policial militar retomasse a experiência, em escala diminuta. Implantou-se, então, o GPAE, no Pavão-Pavãozinho e no Cantagalo, com grande sucesso. Os homicídios foram zerados por dois anos e os investimentos qualificaram aqueles espaços urbanos e sociais. Mas, de novo, a política dissolveu o sucesso, reconhecido por todos –fizeram-se documentários a respeito, um deles na BBC. Essa foi a gênese das UPPs.
            No Rio, criei --com um grupo de técnicos que admiro pela competência e a dedicação incansável—o programa Delegacia Legal, originalmente uma intervenção sistêmica sobre a gestão e todo o funcionamento da polícia civil, com o fim das carceragens nas delegacias, a informatização, integração em rde e geração dos instrumentos indispensáveis ao diagnóstico, planejamento e avaliação das ações implementadas. Saíamos de um modelo degradado, em que havia um arquipélago de unidades locais, para a formação de estruturas institucionais. Aprendi que o maior inimigo da corrupção e do voluntarismo reativo, fonte da ineficiência, é a anarquia organizacional. Por isso, desde que inauguramos a primeira Delegacia Legal, já em 29 de março de 1999, e até minha saída do país, os segmentos criminosos da polícia passaram a ameaçar a mim e minha família. O novo padrão implicava ordem, controle e gestão racional, bases para eficiência, trabalho inteligente e preventivo. Assim como para a valorização profissional do policial.
            Criamos também as Áreas Integradas de Segurança (circunscrições territoriais, correspondentes a múltiplos dos setores censitários –para que se possa operar com dados demográficos e outros, na ausência dos quais os números absolutos de crimes são inúteis-- sob responsabilidade compartilhada de uma unidade da PM e algumas delegacias), sem as quais não seria possível acompanhar com dados o desempenho policial nem seriam viáveis cooperação entre as polícias civil e militar.
            Criamos a campanha pelo desarmamento, para que o foco da segurança passasse a ser a arma ilegal e o tráfico de armas, com o objetivo de impedir o controle territorial por parte de criminosos e conter a propagação dos crimes letais. Fizemos com a sociedade civil aliada o primeiro levantamento sobre armas ilegais no estado e derrubamos vários mitos, abrindo espaço para uma visão inteiramente nova sobre o problema, até então completamente negligenciado. Exemplo, supunha-se que as armas ilegais seriam majoritariamente longas e importadas. Mas elas eram e ainda são, em sua imensa maioria, de fabricação nacional e leves. Fui ao presidente Fernando Henrique pedir que o Exército assumisse sua missão constitucional de controlar o fluxo interno das armas e organizar sua base de dados de forma rigorosa e eficiente. Está aí a origem da legislação restritiva das armas que se constituiu, segundo os principais estudiosos, no principal fator responsável pelo declínio dos homicídios no Brasil, nos últimos anos (declínio insuficiente, mas bastante significativo).
            Criei o ISP (Instituto de Segurança Pública, não só para racionalizar a gestão, com a sistematização e qualificação de dados, diagnósticos e avaliações corretivas, mas também para articular mudanças organizacionais nas instituições, envolvendo gestão do conhecimento e investimento em formação) e parcerias com universidades.
            Iniciei a reforma e integração com descentralização da perícia, depois abandonado, mas para o qual repassei 40 milhões, em 2003, como secretário nacional, para tentar ajudar a salvar essa área fundamental do sucateamento que aniquila as chances de investigações eficientes.
            Criamos quatro linhas novas de política de segurança, em quatro Centros de Referência que constituímos (uso o plural não no sentido majestático, mas porque éramos uma equipe na subsecretaria e na coordenadoria): contra a violência doméstica que vitima mulheres e crianças; contra a homofobia; contra o racismo e contra os crimes ambientais. Cada Centro de Referência fazia diagnósticos com as polícias e acompanhava a execução das ações planejadas, além de organizar e oferecer cursos de formação especializada aos policiais.
            Demos uma contribuição relevante para a consolidação do programa de proteção às testemunhas.
            Criamos a Ouvidoria das Polícias, conduzida por Julita Lengruber, cujo trabalho é até hoje referência nacional.
            Sobretudo, marcamos com toda a energia a nosso alcance uma postura, traduzida em atitudes diárias: é possível e necessário combinar eficiência policial e respeito aos direitos humanos. Com essa perspectiva sistêmica, que se completaria com a integração entre batalhões e delegacias, via remanejamentos que o ISP começou a planejar, e o apoio da sociedade que obtivemos, alcançamos, em 1999, além da estabilização dos números relativos aos principais crimes, o menor número de mortes provocadas por ações policiais dos últimos 15 anos. E contribuímos para a geração de uma expectativa positiva, marcada pela esperança de um novo momento, com milhares de policiais que voltaram a crer na importância de uma política consistente de segurança, em reformas estruturais nas polícias e no fim do improviso e da ignorância.
Expusemos o jogo perverso da segurança privada ilegal e informal, antecipando consequências que hoje estão aí, aos olhos de todos, com o fenômenos selvagem das milícias. Propusemos uma abordagem radical para enfrentar esse desafio, que partisse de um debate do governo com a sociedade sobre o orçamento público da segurança e negociamos com empresários formas inovadoras de parceria, que se mostraram promissoras e conquistaram forte adesão.
Mas para avançar teria sido necessário abrir guerra total contra o que eu denominei “banda podre das polícias”, sem mais conciliações e cálculos eleitoreiros. Isso exigiria coragem política e pessoal e muita transparência com a mídia e a sociedade. Mas isso era e continua sendo muito para os políticos, constrangidos pelos cálculos impostos pelo ciclo eleitoral bienal, refratário a políticas que requeiram tempos longos de maturação. Essa agenda terá de ser retomada algum dia. Nosso trabalho no Rio virou referência nacional, influenciando até hoje políticas de segurança nos mais diversos pontos do país.
Em Porto Alegre, com abordagem preventiva, logramos reduzir a zero os homicídios na Restinga, conforme é notório naquela cidade e foi reconhecido pelo jornal Zero Hora, que fazia oposição ao prefeito Tarso Genro. O que fizemos? Disputamos, como eu sempre propus, os meninos com o tráfico, oferecendo a eles valorização pessoal, acompanhamento permanente, perspectivas. Com ampla participação multissetorial das secretarias e instituições públicas e da sociedade, envolvendo agentes de saúde da família, professores, conselheiros tutelares e um policiamento comunitário, com ouvidoria comunitária, identificando vulnerabilidades e nos antecipando, via mobilização dos recursos municipais, nem sempre bem focalizados e metodicamemte aplicados. O recrutamento para o crime muitas vezes começa com o alcoolismo do pai, a violência doméstica, os traumas familiares e a inadimplência escolar, que é sintoma de uma crise mas antes era visto como prova de que o menino ou a menina era problemático(a), o que implicava punição, estigmatização e marginalização. Justamente quando eles mais precisam de apoio. Daí a importância da ação conjugada com os profissionais da saúde, não só da educação.
A fórmula é barata e simples, mas muito trabalhosa. Como a sociedade gaúcha é muito participativa, foi mais fácil obter grandes resultados lá do que em Nova Iguaçu, onde a população tem menos a experiência do associativismo e do engajamento coletivo em projetos desse tipo. Mesmo assim, criamos a secretaria voltada para a prevenção. E criamos, com o prefeito e o apoio do governador e do ministro da Justiça, o primeiro GGI-M (Gabinete de gestão integrada da segurança pública municipal) do país, que depois virou política nacional. Em 2003, quando fui secretário nacional de segurança, criei os GGIs estaduais, reunindo as lideranças policiais de todos os âmbitos e demais representantes das instituições da Justiça criminal, sem hierarquias, como espaço de cooperação para prioridades consensuais, por meios consensuais, sem ferir as autonomias respectivas. Contando com a ação de excelentes delegados e policiais militares, e apostando pesado em ações preventivas, geramos uma atmosfera de diálogo entre as instituições e alguma dose razoável de racionalização de energias. Logramos bons resultados: redução de cerca de 10% de homicídios (que definimos como a maior das prioridades). A PF ajudou bastante, avançando sobre a segurança privada ilegal, onde agiam e agem grupos de extermínio e milicianos. Tudo somado ajudou a produzir o resultado que é insuficiente, mas tem a sua relevância.
Na secretaria nacional minha missão era começar a implantar o plano nacional de segurança com o qual Lula havia sido eleito para o primeiro mandato (plano do qual eu havia sido um dos coordenadores e para cuja redação reunimos vários dos mais experientes policiais e pesquisadores). Os primeiros dois passos previstos eram: negociar com os governadores a adesão ao SUSP (Sistema Único de Segurança Pública) e à reforma do modelo policial, o que exigiria propor uma PEC ao Congresso Nacional. Os governadores aderiram, mas, infelizmente, mais uma vez, os cálculos políticos se interpuseram e obstaram a celebração desse sonhado pacto pela paz, base das mudanças ansiadas e sempre adiadas.

Pergunta: Em relação à realidade que encontrou no governo Garotinho, como avalia a segurança do Rio hoje? E a qualidade das polícias, inclusive no que se refere à corrupção?

Resposta: O diagnóstico que fizemos continua válido, assim como a agenda que propusemos à sociedade e começamos a implementar. Contudo, praticamente todos os problemas se agravaram. O ponto fundamental ainda é o mesmo: nosso problema são as polícias. Antes de modificá-las, valorizando nossos bons profissionais com salários decentes e formação adequada, e transformando as condições de governabilidade das polícias (posto que ainda são ingovernáveis), não há como avançar. Como dar escala às UPPs sem mudar as polícias, fontes do pior mal, da pior ameaça à segurança, que são as milícias (que já suplantaram o tráfico em relevância, força, lucros, poder político e presença física no estado)? De que adianta combater um ou outro tipo de crime, como o tráfico de drogas, se a realidade é que as polícias fluminenses se converteram em incubadoras do crime organizado e sob a mais grave das formas? Repito o que defendia e o que tentei fazer, em 1999, até ser exonerado, em março de 2000: é preciso declarar guerra ao crime na polícia, isto é, ao que eu chamava, à época, banda podre das polícias, que hoje está mais para orquestra do que para uma simples banda. E digo isso com tristeza e respeito às instituições. E mais: digo por respeitá-las e valorizar os excelentes profissionais que lá estão, honrados, honestos, competentes, arriscando a vida por salários indignos, ultrajantes.

Pergunta: Em relação ao que encontrou no início do governo Lula, como avalia a política nacional de segurança? Nesses oito anos, houve algum avanço em questões centrais, como a articulação com os estados, a formação dos policiais, a integração da ação das polícias e outras que vc considera importantes?

Resposta: Os pontos chave da agenda --que constam do primeiro plano nacional para o primeiro mandato do presidente Lula—não foram tocados, desde que saí do governo. Eles se referem à criação de condições políticas, via celebração do que eu chamava “pacto pela paz”, com todos os governadores, para o envio ao Congresso de uma PEC consensual, visando a mudança do artigo 144 da Constituição e, assim, a mudança de nosso modelo policial (que constitui nossa jabuticaba institucional: só o Brasil divide ao meio o ciclo do trabalho policial entre polícias civis e militares, e divide ao meio cada uma delas, separando as carreiras dos oficiais e dos não-oficiais, dos delegados e dos não-delegados). À União o artigo 144 confere obrigações muito inferiores ao que seria necessário. Os municípios, tão fundamentais no processo da segurança pública, são negligenciados. Junto da mudança do modelo policial, como regulamentação infra-constitucional, institucionalizaríamos o SUSP, para, sem ferir as autonomias dos entes federados, harmonizar e garantir condições nacionais de qualidade. O endosso dos governadores foi obtido. Mas sobrevieram obstáculos políticos e o país perdeu uma oportunidade para afirmar um consenso mínimo.
            Mas houve avanços, sim: na formação policial, com um notável programa liderado pelo excelente secretário atual, Balestreri, o qual já alcançou mais de 300 mil policiais em todo o país.
            No campo da prevenção, o ministro Tarso Genro fez bastante, por meio do Pronasci (programa nacional de segurança com cidadania).
            Contribuições importantes e meritórias, mas insuficientes. Falta alguém com coragem de por a mão no vespeiro, que é nossa estrutura organizacional, legado desastroso da ditadura que passou imune pelo processo constituinte. Falta estender à segurança a transição democrática e modernizadora.

Pergunta: Especificamente em relação ao Rio de Janeiro: qual sua avaliação sobre as Unidades de Polícia Pacificadora?

Resposta: Excelente projeto, com as características já testadas e aprovadas pelos programas “Mutirões pela Paz” e “GPAE”, em seus primórdios. As vantagens das UPPs, em comparação com nossas experiências anteriores, são o apoio do governador e a presença de Ricardo Henriques, um dos melhores gestores públicos do país, cercado de uma excelente equipe na secretaria de assistência social e direitos humanos do estado do Rio. Aplicando políticas sociais consistentes, o governo tornará as UPPs um programa mais que simplesmente policial, ainda que esta dimensão seja fundamental. É o que tentei fazer, é o que o Mutirão pretendeu ser mas não teve pernas nem apoio político dentro do governo para sustentar-se e desenvolver-se. Os problemas ou limites das UPPs são a falta de escala e de sustentabilidade. Como manter e ampliar o programa, sem que se faça algo profundo, radical, para mudar as polícias? Ilhas de excelência são ótimas para demonstrar a viabilidade desse caminho e conquistar apoios indispensáveis para avançar, mas não substituem uma política de segurança. Por exemplo: onde está o combate às armas ilegais? A meu juízo, este deveria ser o foco obsessivo, além da referida reforma policial.

Pergunta:
Acredita que esse modelo é viável em áreas como a Rocinha e o Complexo do Alemão?

Resposta: Acredito, mas será preciso, em paralelo, insisto: combater as armas (como elas transitam pelo estado? Como chegam e saem dos morros? Como lá transitam?) e mudar as polícias.

Pergunta: É um modelo sustentável no longo prazo?

Resposta: Já respondi.

Pergunta: Quais foram os erros cometidos pelos PMs envolvidos no confronto do último sábado em São Conrado?

Resposta: Se o confronto deu-se por acaso, porque a viatura policial se deparou com um “bonde” do tráfico, a ação policial pode ter visado somente a legítima defesa de suas vidas –o que é natural, correto e necessário. Não haveria muitas alternativas. Se, entretanto, houve, como dizem, planejamento, terá sido uma loucura completa. Uma estupidez. Como armar uma emboscada naquele horário, numa rua movimentada, cheia de crianças e inocentes, transeuntes e automóveis? A mesma perplexidade se aplicaria a uma ação desastrada em uma favela, como eu sempre sustento. Não falo como residente de um bairro nobre. Falo como cidadão e como técnico. Uma pergunta, entretanto, não quer e não pode calar: se os moradores do bairro sabem que o “bonde” passa todo sábado ao amanhecer, vindo de festas no Vidigal a caminho da Rocinha, por que a “inteligência policial” nunca preparou uma acão eficiente e segura?

Abraço,
Luiz Eduardo (professor da UERJ; ex-secretário nacional de segurança pública)

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Entrevista de Luiz Eduardo para o jornal Le Monde Diplomatique

1.      Quais as causas da violência e da criminalidade que assolam de maneira crescente o Brasil?

Resposta: Não creio que se deva falar em causas, porque evocá-las implica supor que sua existência provoca efeitos, entre os quais o fenômeno denominado “a violência” ou “a criminalidade”.  Alguns responderiam: pobreza. Eu refutaria apontando para o imenso oceano de pobreza no Brasil e dizendo: eis aí, milhões de pobres vivendo em paz e respeitando as leis. Ou: e os banqueiros, empresários e políticos presos e condenados? Não cometeram crime? Pois são ricos e educados. Há países muito mais desiguais ou pobres do que outros com muito menos violência e crime, assim como há regiões no interior de um mesmo país que apresentam essas mesmas características, invertendo o chavão. Quem associar pobreza a violência estará, involuntária e inadvertidamente, justificando o procedimento do policial que, entre o pobre e o rico, escolhe abordar e revistar o pobre. Ou seja, uma teoria social que eleja a pobreza como causa acaba por endossar o estigma, o preconceito.
                Outro problema grave embutido nos pressupostos da pergunta é a ideia de que violência e criminalidade possam ser referidas no singular, como se houvesse uma só forma ou como se todas as formas pudessem ser sintetizadas em uma palavra ou um conceito. A suposição é falsa e serve à reprodução do senso comum, cujos pecados são a generalização e o reducionismo, ambos plataformas convenientes aos preconceitos e a visões conservadoras, ambos bastante úteis à reprodução das práticas estatais (na área da segurança e da política criminal) que têm se revelado opressivas, brutais e iníquas.
                De que violência estamos falando? Doméstica, contra a mulher, racista, homofóbica? Briga de trânsito? Entre vizinhos? No futebol? Entre gangues ou máfias? Ataques terroristas por motivos étnicos, religiosos, políticos? Ou estamos falando da violência envolvida na apropriação privada de recursos públicos que salvariam vidas? Ou nosso objeto é a brutalidade policial? Ou de traficantes e milicianos? Ou o foco é o bullying ou a humilhação a que os mais poderosos por vezes submetem os mais vulneráveis, sobretudo em sociedades desiguais como a nossa? Ou nos referimos à violência sofrida pelos que não têm acesso à Justiça? Em cada caso, os dramas são diferentes, seus atores são distintos, os processos físicos, psíquicos, simbólicos, culturais, emocionais, ambientais, sociais e econômicos são diversos. As lógicas sob as múltiplas dinâmicas variam e, portanto, mesmo que considerássemos razoável empregar a linguagem da causalidade, teríamos de identificar uma multiplicidade enorme de causas e efeitos.
                Outro ponto: criminalidade. Ora, crime não nasce como a vegetação ou o cabelo, a unha ou a espinha. Não é uma coisa, um evento, um acidente, fenômeno ou um fato. É uma qualidade que certos tipos de sociedade atribuem a determinadas práticas, em momentos precisos de sua história. A qualidade é a da transgressão, a qual supõe o estabelecimento de leis. Ilegal ou criminoso é o que se desvia do padrão ditado por normas legais. Não há um sem o outro. E como as leis variam de sociedade para sociedade e mudam radicalmente com o tempo, por razões as mais diversas, também o crime varia. Adultério feminino no Irã contemporâneo é crime punido com a morte. Em certos estados norte-americanos o sexo anal heterossexual era crime até a década de 1950. Valores associados a circunstâncias políticas e econômicas ensejam legislações inteiramente diferentes. Por isso, seria um absudo atribuir a qualquer fator a causa da criminalidade, ainda que se adotasse a linguagem das causas e dos efeitos. Mais apropriado seria indagar sobre as causas das leis que criminalizam ações humanas, ao sabor da história.
                Assim como há inúmeras modalidades de práticas e experiências passíveis de merecer a designação genérica “violentas”, e tantos tipos de crimes quantas leis houver, é vaga e incerta a ideia de uma “criminalidade violenta”.
                Dito isso, varrido o caminho de pressupostos perigosos que embotam a reflexão crítica, podemos recolocar a questão, agora em outros termos: haveria fatores cuja presença facilitasse ou estimulasse a prática de determinados atos justificadamente considerados violentos, e classificados como criminosos no Brasil, hoje? Claro que sim. Desde que jamais subestimemos a importância da agência humana, do sujeito individual e de sua liberdade, a despeito das inúmeras e poderosas restrições e dos inevitáveis condicionamentos. Desde que compreendamos esses fatores como variáveis cuja presença favorece a prática de atos criminais violentos e, portanto, deve ser evitada, se desejamos reduzir as chances de que ocorram. Exemplos: podem ser definidos como fatores facilitadores da violência doméstica contra as mulheres: uma cultura machista que, tácita ou explicitamente, autoriza agressões físicas e ou psicológicas e morais às mulheres; associada à falta de apoio institucional na defesa das mulheres; somada à ingestão abusiva de álcool. Outro exemplo, nesse caso de fatores facilitadores do recrutamento de jovens do sexo masculino para gangues armadas, praticantes de homicídios: evasão escolar; depreciação da auto-estima; experiências traumáticas em casa, na escola ou na comunidade; associação cultural entre masculinidade e brutalidade; ausência de alternativas atraentes de lazer; falta de perspectivas atraentes de acesso a emprego e renda; expectativa de reprodução da vida economicamente subalterna e desvalorizada dos pais; contraste entre, por um lado, a convocação universal ao consumo e à posse de fetiches (que valorizam, identificam e, ilusoriamente, distinguem e singularizam) e, por outro, o veto, na prática, ao ingresso nessa festa hedonista e sedutora.

2.      Como você interpreta a existência de 35 mil mortes por ano por armas de fogo, no Brasil? Quase todos são muito jovens, negros e pardos, pobres. Existe algo como a criminalização da pobreza?

Resposta: Trata-se de duas questões distintas, que não estão necessariamente ligadas. A segunda diz respeito à criminalização da pobreza. Indaga-se se ela existe. Claro que sim. Os dados são eloquentes. Basta consultar os relatórios anuais das Varas da Infância e da Juventude, Brasil afora. Há mais de 15 anos, têm aumentado o número de casos envolvendo jovens menores de 18 anos e uso ou comércio de drogas. A imensa maioria dos jovens identificados é pobre. A presença entre eles de negros não retrata com equilíbrio a distribuição na população, isto é, há evidente concentração de negros cumprindo medidas. Por que? Os meninos pobres consomem mais drogas ilícitas? Comercializam mais? Vejamos o que de fato ocorre. Quando jovens de classe média são pegos com drogas, suas famílias compram dos policiais sua liberdade –o que é mais oneroso e complicado para famílias pobres, que, em geral, sequer são despertadas no meio da madrugada por telefonemas atenciosos e preocupados de policiais, em tom paternal, solicitando o comparecimento do pai para uma conversa acerca de drogas e juventude, com especial foco em seu filho adolescente! Ou então o juiz tende a empregar a liberdade de interpretação que lhe facultou a “flexibilização” da lei, saudada em 2006 como um avanço. Como aplica essa liberdade? Se determinada quantidade de drogas é encontrada com um jovem de classe média, mesmo sendo superior ao consumo imediato, o magistrado tende a aceitar a versão de que trata-se de uma provisão para muito tempo, porque o jovem quer manter distância dos traficantes, ou se trata de provisão para uma festa circunstancial. A mesma quantidade com jovem pobre tende a ser interpretada como tráfico. As justificativas, aqui, não mais se aplicam.
                Enviado a uma entidade sócio-educativa, o jovem pobre começa a pavimentar seu caminho para as margens, por razões sobejamente conhecidas. A hipócrita política de drogas tem servido apenas à criminalização dos pobres e à corrupção policial (em sociedade com as famílias abastadas que não querem seus filhos enredados nesse novelo pervserso).
                Quanto ao número estarrecedor de homicídios dolosos, praticados no Brasil com armas de fogo, e que vitimizam sobretudo jovens pobres, do sexo masculino, entre 15 e 24 anos, frequentemente negros, a questão é outra. Eles formam um grupo mais vulnerável ao recrutamento, pelos motivos expostos na resposta anterior.

3.      Há distintas análises sobre o papel da polícia. Uns dizem que ela deve agir para fazer respeitar as leis, garantir a ordem pública. Outros dizem que seu papel é manter as classes subalternas sob controle, submissas. Na sua opinião, a análise de suas práticas leva a que conclusão?

Resposta: Há um curioso lapso na pergunta que pode induzir a uma confusão sem tamanho e provocar uma compreensão política inteiramente equivocada e, involuntariamente, cúmplice do que há de pior na segurança pública brasileira e em suas instituições. Explico. A alternativa apresentada na pergunta distingue “dever ser” e “ser”, como se fossem mutuamente comutáveis. Não são. O que deve ser muitas vezes difere do que é. No caso das polícias brasileiros difere intensamente, profundamente, dramaticamente. O que SÃO e o que TÊM SIDO as polícias brasileiras, de uma maneira geral e na maior parte de suas respectivas histórias? Instrumento de opressão dos mais pobres e dos negros, a serviço do Estado autoritário e excludente, em ambiente de despudorada iniquidade no acesso à Justiça. Os trabalhadores policiais frequentemente são antes vítimas das instituições em que atuam do que voluntários e conscientes algozes de seus irmãos de classe. Mas o que DEVE ser a polícia? Para quem tem convicções democráticas e defende, além da liberdade, a equidade no acesso à Justiça, à educação, à saúde, às oportunidades, para uma pessoa assim a polícia deve ser instrumento de defesa dos direitos e das liberdades constitucionais, zelando para que alguns não violem à força ou por subterfúgios os direitos alheios. Se agir dessa forma, sempre protegendo a vida e os direitos, a polícia (qualquer que ela seja) recorrerá à força comedida e adequada a cada caso apenas para impedir que um inocente se torne vítima. A própria palavra repressão, sempre exorcizada como um espectro diabólico, ligada a tudo o que é negativo, mostra outra face quando pensamos a partir de outra perspectiva. Por exemplo: uma criança está prestes a ser violada por um agressor. Impedir a brutalidade significa oprimir o desejo e a liberdade do agressor ou significa defender a criança, a vida, os direitos humanos e constitucionais? A repressão do gesto violador, a repressão do linchamento, do racismo, da violência perpetrada contra a mulher ou contra homossexuais, a repressão que protege o mendigo aviltado na calçada, a repressão que bloqueia o uso da arma para matar, que evita o assassinato, o sequestro, a tortura, a apropriação privada de recursos públicos pela corrupção, lavagem de dinheiro. Essa é a repressão que preserva a vida, os direitos humanos e constitucionais, as liberdades. A palavra é medonha. Causa repulsa e por bons motivos. Mas cria a falsa imagem de que todo uso comedido da força é contrário aos direitos humanos e às liberdades. A polícia é e será uma instituição indispensável enquanto indispensáveis forem o Estado e o monopólio legítimo dos meios de coerção. Quando os seres humanos conseguirem conviver em paz, respeitando-se mutuamente, em plena liberdade auto-gestionária, a partir de normas consensuais em bases de efetiva equidade, quando e se um dia esse sonho se realizar, não haverá mais Estado, classes, nem as instituições do Estado, inclusive a polícia. Mas até lá, conviveremos com a necessidade de dispormos de meios públicos de defesa contra violações, para que não recuemos ao tempo anterior às polícias, tempo de linchamentos e milícias locais, baronatos que faziam suas leis e se regiam pela vendetta –alguma semelhança com certas realidades cariocas não são mera coincidência...
Se não dissermos que polícia queremos, outros dirão. Em nosso modelo de polícia para a democracia e os direitos humanos, para a cidadania e a equidade, sob controle externo e com transparência, sem bias de classe e cor, tem de constar, com ênfase, a valorização dos policiais, cidadãos, trabalhadores, seres humanos que merecem reconhecimento público, salário decente e tratamento digno.
            Quem confundir o ser com o dever ser, neste caso, correrá o risco de condenar o que é à imutabilidade, de matar na fonte os projetos de mudança e de atar o futuro aos rastros do passado.

4.       Como podemos entender a existência, tolerada por governos, de grupos de extermínio, esquadrões da morte, e mesmo atos de violência como o massacre do Carandiru, ou as próprias milícias que surgem no Rio e Janeiro, controlando territórios e se enfrentando com o narcotráfico. Os policiais tem licença para matar? A impunidade dos seus crimes não sugere isso?

Resposta: São muitas perguntas numa só. Os casos são diferentes, têm especificidades, ainda que haja conexões em determinado nível, uma vez que por trás de tudo isso estão a tolerância com a execução extra-judicial e o desprezo pela legalidade constitucional quando está em jogo a criminalidade praticada pelos pobres, os descartáveis, os alvejáveis. A história das milícias no Rio, por exemplo, é objeto do livro Elite da Tropa 2, que acabei de escrever com Cláudio Ferraz, André Batista e Rodrigo Pimentel, e que será lançado dia 8 de outubro, junto com o filme, Tropa de Elite 2. Milícia remete, em sua gênese, à segurança privada, à degradação de instituições políticas e policiais, a políticas de segurança desastrosas. Hoje, elas são o que há de pior, de mais bárbaro e mais grave. Constituem o que, tecnicamente, se chama “crime organizado”. São máfias formadas sobretudo por policiais. Elas já ocupam espaços políticos. As UPPs, no Rio, tão celebradas –as quais retomam nossa política anti-belicista e comunitária dos Mutirões pela Paz (1999) e do GPAE (2000/2001)--, não sobreviverão se as polícias do Rio não forem transformadas radicalmente. Hoje, o Estado, no Rio, por meio de suas polícias, está, em função das milícias, metido no pântano até os quadris, mas mantem o prumo, a elegância e o sorriso suave dos delicados. Acontece que o pântano suga o corpo como um vampiresco monstro ctônico. As promissoras UPPs serão tragadas para o fundo em pouco tempo, como aconteceu nas duas experiências anteriores, porque a hegemonia nas polícias impõe limites estreitos ao projeto.

5.       Você acha que a atual estrutura das corporações policiais tem possibilidades de reforma, ou seria melhor dissolver as policias e começar tudo de novo? Existem condições políticas para isso?

 Resposta: Temos de começar de novo, respeitando direitos trabalhistas adquiridos e valorizando o conhecimento e a experiência dos milhares de excelentes e honestos policiais que há, nas polícias estaduais. Sobre isso tenho escrito muito, há muito tempo. Quanto às condições, acho que, hoje, não existem, mas terão de ser criadas. Também analisei as razões de nossas dificuldades nessa área. Para sintetizar, eu diria que ainda não fomos capazes de construir, nem mesmo entre nós, um consenso mínimo que transcenda a dimensão negativa e aponte alternativas realistas, eficientes e realmente capazes de se adequar, na prática, a nossos valores. Nós, os segmentos mobilizados e socialmente comprometidos, radicalmente democráticos da sociedade brasileira, ainda não conseguimos entender que segurança é um direito básico, que o Estado tem o dever de garantir, universalmente, com equidade. Isso foi compreendido no campo da saúde e daí nasceu o SUS, alavancado por movimentos sociais e de profissionais, supra-partidários. O mesmo se passou nos campos da assistência social (veja a LOAS) e da educação. Na segurança ainda há resistência a reconhecer que a questão não se esgota nos temas da violência policial contra os pobres e da criminalização da pobreza. O tema abrange outras formas de violência que atingem todos os grupos sociais, inclusive atos de pobres contra ricos e contra policiais. O pobre nem sempre é vítima. Policial nem sempre é algoz. Direitos humanos, que defendemos e devemos sempre defender intransigentemente, são, por definição, de todos. Não podemos admitir suas violações por quem quer que seja contra quem quer que seja, por mais que compreendamos motivações, processos históricos, dinâmicas sociais, sofrimentos e traumas, experiências inter-subjetivas negativas. Em geral, o menino pobre que se arma e se lança numa vida de violência começa como vítima, torna-se algoz e acaba como vítima. Entender e sentir compaixão inclusive pelos algozes não podem nos levar a rasgar os compromissos com os direitos humanos de todos. Creio (espero) que um consenso nesse sentido será em breve possível e viabilizará mudanças profundas. O consenso se dará em torno da defesa da vida e dos direitos humanos, e da equidade no acesso à Justiça. Ou seja, em torno da ideia de que são inaceitáveis a brutalidade policial e a brutalidade de qualquer cidadão contra outro ou outra, a não ser no caso extremo de legítima defesa.
A excelente notícia é que 70% dos policiais brasileiros se declaram contrários ao atual modelo de polícia, em que o município é esquecido, a União esvaziada e os estados aquinhoados com duas polícias mutuamente hostis, cada qual destinada a cumprir uma parte do ciclo de trabalho policial. Uma esquezofrenia absurda que só poderia gerar ineficiência, desarticulação e o quadro inadministrável que temos hoje em boa parte das polícias. O dado foi obtido na pesquisa “O que pensam os profissionais da segurança no Brasil”, que realizei em 2009 com Marcos Rolim e Sílvia Ramos, com apoio do Ministério da Justiça e do PNUD, em que foram ouvidos 64.130 policiais e demais profissionais da segurança pública de todo o país.

6.       Se o problema é tão grave, porque não se investe na qualificação da polícia, salários, equipamentos, treinamento, seleção mais aprimorada, requisito de maior escolaridade, etc.?

 Resposta: Isso tudo seria importante, mas estaria longe de resolver o problema. Temos de implodir a estrutura organizacional legada pela ditadura, fixada no artigo 144 da Constituição, que determina o modelo policial. Além disso, precisamos de políticas de segurança cujas prioridades sejam a vida, os direitos e as liberdades, com equidade.

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Repetições e a crítica teatral

Assisti a montagem emocionante de um texto notável, escrito por Hélio Sussekind: “Recordar é viver” (dirigido por Eduardo Tolentino, com excelentes atores, entre eles Suely Franco e Sérgio Brito, cujos desempenhos marcarão época). Está em cartaz no Rio, no CCBB, e o preço do ingresso é mínimo (R$ 5,00). Hélio teve a coragem de voltar a um tema forte, matricial, arcaico e permanente: família.

Crescer em família, amar e odiar em família, calcinar os nervos em família, agonizar em família. A fonte da vida é também sepulcro; horizonte é limite; suporte para o salto é a âncora que enraiza, estabiliza, protege, firma as bases na turbulência, mas também serve de grilhão. A família, ninho quente e amoroso, pode ser a arena da violência, o festival de tripas e sangue onde gladiadores da impotência se imolam. O leite materno instila vida mas pode envenenar. Filhos são aposta no futuro, na renovação, no recomeço libertador e criativo, mas eventualmente também podem vir a ser a projeção no futuro do inferno, a extensão do cativeiro, a sentença do vampiro, que é a mais cruel, porque condena à imortalidade. Triunfo do mal sobre a morte: dor e patologias para sempre. Reprodução pode ser a metástase de vidas-calvário: desamparo, pequenas tiranias, desertos e bunkers pretensiosos, inúteis e solitários.

Fonte do novo que instaura a diferença no contínuo da história, a maternidade e a paternidade, gerando mais um ser humano, correm o risco de acionar o mecanismo da repetição. Sim, a repetição garante a sequência da vida e apazigua nossa inquietação, balizando, com as molduras imaginárias da rotina e as armaduras da disciplina, a incerteza que marca nosso destino. A repetição remete a promessa assustadora da mudança à mansidão do mesmo, ainda que o mesmo sangre, ainda que o mesmo cave em nós feridas atrozes com suas tenazes atemporais. Por outro lado, se não remetermos o que vivenciamos no aqui e agora ao que fomos ou supomos ter sido e vivido, a precária experiência da identidade escoa e nos esvazia, plasmando em nós o epíteto de T.S. Elliot: seremos feixes ocos de elmo, escorados uns nos outros, sem memória de nós e, portanto, sem esperança.

O que a reiteração de neuroses arquetípicas faria de nós?

Levar adiante o fardo do passado esmaga o futuro, se não soubermos decifrar o enigma familiar, as tramas da origem. Repetiremos como farsa a tragédia familiar arcana, mas a farsa fará de seus personagens, nós inclusive, meros vestígios da tragédia, restos e rastros de obsessões alheias, sintomas evanescentes de frustrações mofadas.

Por isso, o filho problemático da peça de Hélio Sussekind concentra em si, em sua sina perturbada e perturbadora, a consciência do jogo que jogamos, a lucidez difícil de suportar. Em sua obscuridade, em seu ócio incandescente e opaco, que calcina, promete as cinzas, pressente e prenuncia a morte, ele insiste em sobreviver. Atravessa as noites, peregrino, cruzando desertos intermináveis para fertilizar a superfície gelada com o fogo alucinatório do desejo, a vontade de escrever, a evocação de Pierre Ménard, Macbeth e Sheakespeare, personagens de seu Santuário, repertório de sua linguagem cifrada. A loucura do filho que não ousou a prodigalidade (não retorna porque não sai de casa e do quarto-caverna) pisca o olho esquerdo para o inconsciente da platéia.

Risca os fósforos, indefinidamente, até a exaustão física que o faz adormecer, porque não aceita (abençoado por David Hume, diria um filósofo) render-se à suposição de que o futuro será a mera reedição do que foi. O filho não tem fé na indução, porque sabe que o futuro é imprevisível. Ele arrisca o próximo teste sobre luz e trevas, riscando fósforos, até o extremo de suas forças, o que lhe permite tocar com os dedos extenuados seus próprios limites. Acende e apaga o momento, abolindo ilusões da linguagem, acendendo e apagando a comunicação. Indução é só retórica, fumaça que enleva e intoxica.

Riscando fósforos, noite após noite, o filho estranho queima pontes com os outros e consigo mesmo. Implode os nexos entre passado e futuro. Exercita a saída da casa-Ithaca e se lança na aventura da desmesura, na desventura de mares e monstros, sereias e cantos enganadores, máscaras e fetiches da identidade e do sentido. Ali, em seu cantinho modesto e desarrumado, o filho-problema, em sua aparente imobilidade, realiza os 12 trabalhos de Hércules, a viagem de Ulisses, o destino epopéico do filho pródigo, resistindo, por não sair, a voltar. Resistindo à volta, adia o reencontro com a casa-Ithaca, a mãe, o mesmo, a unidade que, por não se realizar como relação amorosa de desiguais, por esgotar-se na simbiose com o mesmo, representa a morte. Ficar é, nesse caso, uma estratégia de sair mais radicalmente. Só há salvação no apegar-se rude (porque a contrapelo) à diferença. Entretanto, essa via conduz ao desfiladeiro, ao silêncio e à loucura.

O pai seria um apoio fundamental para a libertação do ardil, mas não é vigoroso o suficiente para abrir picadas e apontar sendas alternativas. Generoso, oscila entre o cumprimento de seu mandato paterno e o lugar de irmão mais velho, cúmplice, complacente, tudo tolerando até apagar os limites que lhe dariam contorno definido. De fracasso em fracasso, contempla o presente como retratos do passado. Gira sobre si: piruetas sobre o abismo. Personifica o eterno retorno. Inscreve a morte no curso da vida e abençoa o filho que se afoga, enternecido com seu esforço desesperado, aplaudindo, orgulhoso, a vã coreografia do caçula querido.

A estratégia do filho-problema --riscar fósforos como quem risca o papel em branco na expectativa de flagrar a cegueira que virá, inexorável, ou na expectativa de flagrar o vazio criativo que desnudará o vazio do sujeito, sua negação, a morte-- é inútil e ineficiente. Nem o sujeito está vazio, nem Édipo será punido para expiar a culpa. Todavia, a estratégia é, sim, extraordinariamente eficiente quando se trata de surpreender e mobilizar os que buscam, num programa de sábado à noite, apenas a aragem suave da diversão e o sopro débil da beleza cênica. Com delicadeza rascante, Hélio Sussekind nos oferece as circunvoluções enfeitiçadas e fascinantes de seu ciclone imóvel.

A platéia vibrou com o espetáculo, na sexta-feira em que fui assisti-lo. Riu, chorou, aplaudiu com entusiasmo. A considerar-se o que escreveu no Globo, Barbara Heliodora não gostou da peça. Pareceu-lhe repetitiva. Acho que ela não captou o espírito da coisa. A peça é sobre a repetição. Espero que a impossibilidade de ver e ouvir o que o texto sussurra entredentes não tenha a ver com as presas, garras e correntes da repetição, que esmagam e trituram, no universo da crítica, a dimensão selvagem sem a qual não há arte. Aquela dimensão que irrompe quando um filho inclassificável, falando língua desconhecida e se desviando para o quarto escuro, joga luz sobre a indigência da sala de visitas em que se fala a língua morta das platitudes e do bom gosto.

Luiz Eduardo Soares