sábado, 25 de setembro de 2010

Mistérios


Capítulo do livro Elite da Tropa 2, de Luiz Eduardo Soares, Cláudio Ferraz, André Batista e Rodrigo Pimentel, que estará nas livrarias a partir do dia 8 de outubro, editado pela Nova Fronteira.
            Os nomes dos personagens foram mudados, mas a história é estritamente verdadeira.
***

Mistérios

            Alguns fenômenos são misteriosos e permanecem enigmáticos ao longo dos anos. Quanto mais pensamos neles, menos os compreendemos. No mundo policial, em particular no campo de batalha e no universo do BOPE, não é diferente. É o caso de Lamartine Feitosa, cabo da PM, ex-companheiro, homem de valor, valente e leal, que se converteu e pediu afastamento do BOPE. Preferiu retornar a unidades convencionais, nas quais, também por opção, têm se empenhado em tarefas administrativas.
            Outro dia visitei o Queiroz, subcomandante de um batalhão da zona norte, velho amigo. No meio da conversa apareceu o Feitosa. Bateu na porta, entrou cauteloso, sorriso sereno. Fiz uma festa quando o saudei. Ele parecia emocionado com o reencontro. Modesto, não se estendeu. Perguntou se podia providenciar um cafezinho, uma água, e passou ao subcomandante a papelada burocrática do dia.
— Com licença. Foi um prazer rever o senhor, capitão.
Prestou continência e saiu como o vento pela fresta da porta.
Queiroz confirmou que Feitosa agia sempre assim, desde que chegou ao batalhão. Furtivo, poucas palavras, educado, gentil, prestativo ao extremo, sem ambições aparentes, atencioso com todo mundo, mas evasivo. Fazia tudo para manter-se longe de ações externas, sobretudo da rotina de incursões e enfrentamentos.
— Na dele, sempre — disse Queiroz.
Mesmo assim, a tropa o respeitava como guerreiro. Afinal, tinha passado pelo BOPE e saiu porque quis. Seu conceito nunca havia sido questionado. O prestígio entre os caveiras estava intacto.
Queiroz completou:
— Não fala do passado no BOPE. Não gosta. Quando a gente pergunta sobre alguma ação de que participou, desconversa. Quando os colegas contam alguma história dos confrontos, se afasta. Disfarça e se afasta.
***
            Eis o que aconteceu — e que não explica a mudança, mas a antecede.
            Acostumado à rotina do BOPE — guerra à noite, descanso de dia, deslocamentos via transporte público —, Feitosa cochilava, no ônibus, voltando para casa, quando dois rapazes anunciaram um assalto. Armado e portando documento de identidade policial, sabia que era matar ou morrer. Instintivamente, sacou a pistola, ergueu-se no banco e atirou nos ladrões, que reagiram tarde demais e sem precisão. Os dois bandidos morreram, mas, felizmente, ninguém mais se feriu. A técnica o salvou, ele disse muitas vezes nos dias e nas semanas seguintes. O treinamento do BOPE o salvou. Agiu como guerreiro eficiente, veloz e preciso, graças à experiência. Feitosa repetia o que nós todos gostávamos de sublinhar: nenhuma outra tropa urbana do mundo tinha o privilégio de praticar, como nós, diariamente, as táticas de combate antiguerrilha. Por isso, éramos os melhores. Por isso, até os israelenses vinham aprender conosco.
            Até aí, nada de novo. Nada excepcional. O episódio apenas demonstrava a perícia de nosso companheiro. Mas não foi assim que ele vivenciou a situação. Por algum motivo, a cena mudou sua vida. Mudou sua maneira de ver a profissão, seu jeito de falar, sua atitude. Se isso tivesse acontecido com qualquer pessoa, eu entenderia. Matar pode transformar muita coisa na cabeça de um indivíduo. No entanto, para Feitosa, matar era parte de seu ofício. Era parte de seu cotidiano. Por que aquelas mortes foram tão especiais?
            Saindo do gabinete do Queiroz fui tomar um café com Feitosa. Senti que ele estava desconfortável, talvez porque eu arrastasse comigo um passado do qual ele participara, que era também seu e que ele preferia esquecer. Por isso, escolhi temas neutros. Falei de minha família, futebol, coisas assim. Ele foi se desarmando. Se eu bebesse, o convidaria para um chope. Ele teria me dito que tinha parado de beber. A religião proibia. Feitosa tinha se convertido. Era evangélico. Isso eu já sabia. Como estávamos sozinhos e a conversa nos aproximou, mostrei curiosidade por sua conversão. Quis saber como ele tinha descoberto a fé. Ele não se furtou a me falar de suas crenças. Por essa via, encontrei uma brecha para mencionar o episódio e lhe perguntei se o caso tinha sido decisivo ou tinha pelo menos contribuído para sua transformação espiritual.
A resposta de Feitosa não saciou minha curiosidade. Na verdade, me deixou angustiado. Fiquei com a sensação de que o campo vasto de minha ignorância ia se ampliado na medida em que as palavras do velho camarada pareciam fazer sentido.
Ele disse mais ou menos o seguinte:
— Quando atirei nos homens dentro do ônibus, eu estava lá e eles estavam lá. Havia mais gente, gritos, medo. Mas nós três estávamos lá. Um diante do outro. Fui eu que atirei no primeiro, capitão. Eu, Lamartine, o homem, a pessoa. Fui eu que atirei no segundo. Entendeu? O primeiro caiu pra trás. Morreu na hora. O segundo tombou de lado, emborcou, e sangrou muito antes de morrer. Duas vidas, capitão. Eram dois jovens. Olharam pra mim. Eu olhei pra eles. Nós nos olhamos.
— Você morreria se não atirasse, Feitosa. Tem dúvida de que eles teriam matado você?
— Teriam matado, sim. Mas não foi o que aconteceu, porque atirei primeiro. Quem matou fui eu.
— Ainda bem, Feitosa. Ou você está arrependido? Acha que errou? Não deveria ter atirado?
— Não errei, não.
— Pois é, legítima defesa.
— Eu sei.
— Então, por que isso perturba tanto você?
— Porque está errado fazer a coisa certa.
Acho que ele notou que fiquei pasmo. Tanto que retomou a palavra:
— Capitão, ouve. Presta atenção.
Feitosa repetiu o que tinha dito, com as mesmas palavras. Que os três estavam no ônibus, etc.
Então me calei. Desisti de entender, mas intuí que havia alguma coisa no que ele dizia, alguma coisa que tocava a verdade. E logo o presságio de que essa verdade se revelaria desapareceu sem deixar rastro. Voltei a me sentir perdido nesse emaranhado.
Um tempo depois, em que cozinhamos o silêncio em fogo baixo, ele acrescentou:
— Nas incursões, capitão, vestíamos uniforme.
E daí? pensei. Que diferença isso faz?
Feitosa prosseguiu:
— Nos confrontos, éramos partes de uma engrenagem.
OK, eu pensei. Tudo bem. E daí? Sem organização é impossível combater. Somos uma máquina. Máquina de guerra. Um mecanismo do Estado armado para matar. Qual a diferença? Uma pistola municiada funciona do mesmo jeito. O projétil disparado mata da mesma forma. A guerra e a legítima defesa são razões suficientes para justificar o tiro fatal. As situações se equivalem? Onde está a diferença?
O velho companheiro concluiu:
— Não estávamos sozinhos, capitão, mesmo que, fisicamente, em algum momento da ação, cada um de nós estivesse sozinho. Quem agia era a equipe. A vontade que a gente encarnava era da corporação. O cabo Feitosa participou de muitas operações e matou em combate. Eu nunca estive em nenhuma operação. Eu, Lamartine, nunca tinha matado ninguém.

sábado, 18 de setembro de 2010

Bolcheviques e gambás na carnificina dos dossiês

          A manipulação de dossiês é uma prática repugnante e é bom que se torne alvo da repulsa coletiva. Pena que a mídia tenda a focalizar o problema apenas em campanhas eleitorais. Houve, sim, é verdade, reportagens importantes sobre manobras clandestinas, politicamente orientadas, alimentadas por dossiês fabricados ad hoc para atingir a reputação de pessoas honradas. Mas são raras essas matérias, enquanto a prática, infelizmente, é contínua. Eu mesmo fui atingido por esse tipo de arma desleal, em que o acusador esconde sua identidade e, portanto, sua motivação, evitando, assim, responder por seus atos, comprovar as acusações e responsabilizar-se pelos eventuais efeitos caluniosos. Curioso que, em meu caso, o dossiê, sua autoria e os interesses inconfessáveis escondidos pela máscara do anonimato não foram objeto de interesse por parte da mídia, salvo exceções. Pelo contrário, tomaram gato por lebre, morderam a isca e ignoraram solenemente a forma pela qual as "informações" chegaram às redações de revistas e jornais. Em poucas horas eu me tornei nepotista, ainda que ninguém tivesse parado para verificar se as acusações procediam ou não. Pois elas não procediam, como se constatou posteriormente. Mas era tarde. Estava ali, não na oposição ao governo, mas no coração mesmo do governo, a fonte dessa prática facistóide.
          Interessante observar como se inverteram os valores. A mídia perdeu a oportunidade de descobrir o ovo da serpente instalado no centro do poder, porque preferiu os fogos de artifício do escândalo. E o partido no poder, o PT, ao qual eu pertencia, em vez de tratar o episódio com dignidade, compostura, decência e um mínimo de respeito pelo acusado --cuja longa trajetória cidadã e profissional era conhecida e respeitada-- optou por desqualificar a vítima do dossiê calunioso e covarde --nesse caso, eu.
          Como se deu a desqualificação? Pela manhã, ao telefone, eu disse ao então presidente do PT, Genoíno, que não era necessário que ele me defendesse, porque disso eu mesmo trataria, mas que ele tinha o dever de afirmar, publicamente, que o partido não aceitava o uso de dossiês apócrifos como meio de ação política e que, portanto, se viesse a ficar provado que os autores eram militantes do PT, eles seriam punidos nos termos determinados pelas normas internas.
          Algumas horas depois, o deputado Genoíno, que eu e boa parte do país aprendêramos a admirar, deu uma entrevista coletiva em que me chamou de "gambá", porque espalhava mau-cheiro para ocultar-me. Solicitei minha imediata desfiliação. Ao cargo eu já havia renunciado. Seguiram-se quase dois anos de perseguição stalinista, durante os quais meu nome foi incluído no index governamental. Governos que me convidaram a atuar como consultor foram informados de que não receberiam verbas federais para projetos na área de segurança se eu fosse contratado. Um querido amigo, que ainda mantinha boas relações com Genoíno, foi procurá-lo, em Brasília, para esclarecer a situação e, quem sabe, separar disputas, divergências e até atritos pessoais, de políticas de Estado, como o repasse de recursos. A resposta que colheu foi curta e grossa: se meu amigo quisesse trabalhar na área, que se afastasse de mim. Eu não era um gambá, mas, pela manobra stalinista, fui transformado no bicho pestilento.
          Como é que o quadro mudou? Quando mandei recados pela mídia de que estava disposto a contar minha história, publicamente, sem poupar personagens e práticas contra as quais sempre me batera, mas que terminaram por me derrotar. Somente recuaram do cerco que impuseram a meu nome quando perceberam que eu não me deixaria acuar e que teria energia e coragem política para sair das cordas e partir para o ataque. Por justiça, registro minha gratidão a Tarso Genro e Lindberg Farias, que se recusaram a jogar o jogo da estigmatização e não se furtaram a estabelecer parcerias e valorizar minha contribuição.
          Por isso, digo aos amigos do twitter e do blog: o uso de dossiês é uma peste muito mais comum e corrosiva da democracia do que as escaramuças eleitorais sugerem. A direita sempre trabalhou com essa arma anti-democrática. Mas a esquerda que chegou ao poder adotou essa repulsiva tradição como se fosse uma herança bendita. No fundo, isso mostra que os velhos sonhos de uma sociedade regida pelo respeito aos direitos humanos foram para o espaço, nos setores comprometidos com a esquerda autoritária. Nesse campo, triunfou o utilitarismo mais rastaquera, segundo o qual os fins justificam os meios. Os arautos dessa esquerda não dizem, mas pensam: às favas os escrúpulos burgueses; às favas o moralismo pequeno-burguês; às favas as normas institucionais. A vitória tudo justifica, tudo redime. Pisemos o pescoço do companheiro da véspera. Exponhamos o aliado ao ultraje e ao linchamento público. Assassinemos reputações. O poder estenderá sobre o passado o manto do oblívio. Ao indivíduo, cujo único poder é a dignidade de sua biografia, resta prestar seu pequeno testemunho para que os netos não lhe cobrem a omissão.

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Muitos Sertões, Poucas Veredas: segurança pública no Brasil, hoje


                                                                                                           Luiz Eduardo Soares
Em 2002 o PT venceu as eleições prometendo não adotar a postura dos governos anteriores. O presidente comprometeu-se a chamar para si a responsabilidade na segurança pública, pagando o preço político em nome do interesse público. A bússola era o plano nacional que ajudei a redigir, ao longo de um ano de trabalho coletivo, e para o qual me cabia, como secretário nacional de segurança, em 2003, criar condições de implementação. Partíamos de quatro constatações, resultantes de ampla pesquisa: (1) é preciso mudar o modelo policial, herdado da ditadura e único no mundo: polícias estaduais civis e militares, dividindo o ciclo do trabalho policial e competindo entre si; as primeiras sendo mais arquipélagos de unidades locais do que instituições orgânicas interligadas por estratégias e metas comuns, sob permanente avaliação alimentada por informações em tempo real; as segundas sendo moldadas à semelhança do Exército em vez de estruturadas para o cumprimento de sua missão constitucional, a qual requer descentralização, plasticidade adaptativa e sistemático planejamento para que intervenções preventivas substituam a reatividade e o improviso voluntarista. Esse quadro torna, na prática, as polícias ingovernáveis, do ponto de vista racional, condena-as à ineficiência, contribui para a subordinação e o sucateamento da perícia, a desarticulação nacional das ações contra o crime organizado, o avanço da corrupção e da brutalidade. (2) Também no artigo 144 da Constituição estão dois pontos extremamente negativos que urge alterar: a atribuição de papel muito limitado à União e o esvaziamento da função dos municípios, deslocando as guardas civis para o limbo legal. (3) Cada polícia estadual, além de ser apenas a metade de uma polícia, é dividida em duas partes, formando universos diferentes quando não mutuamente hostis, que não compartilham a porta de entrada nem a própria carreira: oficiais e não-oficiais; delegados e não-delegados. (4) A violência criminal, sobretudo o homicídio doloso, nosso problema número um, deriva de dinâmicas multidimensionais.
Os quatro tópicos remetiam às seguintes linhas de ação: (1) Negociar com as forças políticas, os profissionais e a sociedade, o encaminhamento ao Congresso de uma Emenda Constitucional revendo o artigo 144, visando refundar o modelo policial brasileiro. Qualquer que ele viesse a ser, teria de se apoiar na unificação do ciclo de trabalho policial, o que é diferente da unificação das polícias (medida que nada resolveria, pois, juntando duas metades que não se toleram, criar-se-ia um problema maior do que o atual). Havia e há muitos modelos possíveis: polícias de ciclo completo municipais, regionais, metropolitanas; polícias de ciclo completo especializadas por tipos criminais. Por exemplo: as Guardas Civis municipais poderiam ser responsáveis por evitar e reprimir os crimes de pequeno potencial ofensivo; as PMs, por fazerem face às demais modalidades criminais, à exceção do crime organizado, o qual seria reservado à responsabilidade das polícias civis, convertidas em análogos da polícia federal para os crimes não federais. O importante é que todas as instituições exercessem o ciclo completo (ostensivo, preventivo, investigativo, repressivo). Para que a multiplicidade de instituições não implicasse mais fragmentação e para evitar o equívoco de reduzir todo o conjunto de mudanças sistêmicas necessárias à transformação do modelo policial (a despeito de seu lugar determinante), o plano nacional com que o presidente Lula foi eleito a primeira vez apontava para a criação do Sistema Único de Segurança Pública. O SUSP ofereceria a moldura das mudanças, estipulando regras mínimas, válidas para todas as polícias, sem camisa de força ou centralização, mas efetivas para reverter a babel vigente. Respeitando-se a liberdade federativa e toda a gama tão rica das variações regionais, era (e continua sendo) imprescindível que uma Agência Reguladora estabelecesse um ciclo básico comum, nacional, para a formação, assim como a plataforma de comutação de dados, unificando categorias e métodos. Esforço homólogo aplicar-se-ia na gestão, na valorização da perícia, na articulação com políticas preventivas multissetoriais e no controle externo independente (dotado de recursos humanos e materiais, e de autoridade efetiva).
(2) A União teria de se envolver mais, assumir mais responsabilidades sobre a segurança, sem prejuízo da autonomia dos entes federados. Por exemplo: à União cumpriria formar, gerir e municiar de recursos a Agência Reguladora (o vocabulário usado no documento era outro), cujas tarefas incluiriam: definir critérios de avaliação das instituições policiais, aplicá-los com o apoio de universidades e institutos de pesquisa locais. Corrupção e brutalidade policiais, execuções extra-judiciais, tortura, outras formas de desrespeito aos direitos humanos constituiriam alvos chave que as políticas de segurança estaduais e as polícias teriam de combater, ou haveria suspensão de transferência de recursos federais e, no segundo momento, intervenção. A fidelidade às metas postas pelo SUSP também seria supervisionada pela União, fazendo com que o governo federal deixasse de ser mero balcão varejista distribuidor de dinheiro e impotente na execução. Em paralelo, os municípios seriam dotados de meios e autoridade, e suas guardas civis convertidas em polícias de ciclo completo --desde que cumpridas as severas exigências do SUSP. Claro que com prudência, acompanhamento, transparência, participação da sociedade, ao longo de vários anos, seguindo um plano modular.
(3) Para valorizar os policiais, teria de haver um piso salarial nacional digno, que reconhecesse a relevância do trabalhador policial e a magnitude dos riscos a que se submete. Por outro lado, a carreira policial, em cada instituição, seria unificada, com uma só porta de entrada, permitindo a todos o acesso ao topo, a depender dos méritos, de concursos internos e do tempo de trabalho.
(4) Se o problema da violência criminal envolve, simultaneamente, diferentes esferas da vida social --emoções, valores, família, escola, emprego e renda, saneamento, moradia, transporte e urbanização, acesso a lazer, à cultura e à Justiça--, exige políticas inter-setoriais e uma gestão integrada, incompatível com a dispersão competitiva e em geral partidarizada entre secretarias ou ministérios, e entre União, Estados e Municípios.
O plano do primeiro mandato do presidente Lula não foi implementado. O governo federal preferiu não correr o risco do desgaste e não chamar para si a responsabilidade de liderar as grandes transformações estruturais assinaladas no plano. Fez o mesmo que criticara nos antecessores. Para desviar as atenções do recuo, lançou a polícia federal em operações espetaculares, levando a mídia a tira-colo. Como criticar o governo, na área da segurança, se a PF ocupava as manchetes com ações nunca vistas contra os ricos? Ante a pirotecnia que nem sempre se mostrou juridicamente sustentável, quem se lembrou de perguntar pela reforma da polícia, o SUSP, o piso salarial nacional, o controle da corrupção, da tortura e das execuções extra-judiciais?
No segundo mandato, graças à competência de Tarso Genro, no Ministério da Justiça, e ao excelente desempenho do secretário nacional de segurança, Ricardo Balestreri, houve avanços significativos com o Pronasci e a Renaesp, ou seja, na área do apoio a ações preventivas locais junto a jovens vulneráveis e no campo da suplementação educacional para policiais. Relevante também foi a revalorização de um projeto de minha gestão: os Gabinetes de Gestão Integrada da Segurança Pública, estaduais e municipais. Sobretudo, reiterou-se a convicção à qual tantos de nós temos dedicado nossas vidas: é possível e indispensável combinar respeito aos direitos humanos com eficiência policial. Não há um sem o outro. E ainda: os destinatários dos direitos humanos são, por definição, todos os seres humanos, inclusive, é óbvio, os policiais.
Apesar de significativas, as ações do segundo mandato do presidente Lula foram insuficientes. Do ponto de vista da estrutura institucional e dos problemas estruturais nas polícias, permanecemos, hoje, no mesmo lugar em que estávamos em 2003. As políticas de segurança, de um modo geral, país afora, continuam orientadas para encarceramento desigualmente seletivo de jovens negros e pobres de periferias. A agenda apresentada ao país em 2002/3 permanece atual e urgente. Os problemas são os mesmos. Os crimes graves estão aí. A violência impera. Os policiais, via de regra, continuam desvalorizados. As polícias seguem reativas, refratárias a gestão racional, planejamento sistêmico, avaliação, trabalho preventivo e cooperativo, e ao controle externo. Corrupção, brutalidade, tortura, execuções extra-judiciais seguem batendo recordes. A segurança privada informal e ilegal, servindo de bico, financia o orçamento público, fazendo com que policiais aceitem salários irreais. Beneficiando-se da ilegalidade, os governos promovem um verdadeiro gato-orçamentário, consagrando uma cumplicidade estável e despudorada entre a instituição que deveria zelar pelo cumprimento da lei e a ilegalidade mais flagrante. As selvagens milícias no Rio de Janeiro, crime organizado que já atua no Legislativo, são a metástase desse engate bizarro.
Por outro lado, em alguns estados e em algumas polícias tem havido progresso. Destacaram-se, nesses oito anos, Minas Gerais e São Paulo, além de vários municípios que adotaram políticas preventivas inteligentes e eficazes. Em Minas o salto foi mais consistente. Contudo, o avanço não se deu graças ao modelo policial vigente no Brasil, mas a despeito dele, reduzindo-se os danos por ele produzidos. Alguns nomes tornaram-se referência nacional, em matéria de revolução gerencial, na segurança, e de reversão da tendência reativa das polícias, valorizando a prevenção. Nomes associados a informação em tempo real, qualificação profissional, integração na diferença, coordenação sistêmica, avaliação participativa. A Luís Flávio Sapori deve-se a implantação do IGESP (Integração da gestão em segurança pública)--inspirada no Compstat de New York--, uma das mais importantes iniciativas na segurança pública brasileira. Maurício Campos, secretário no segundo mandato, garantiu a continuidade do processo e o aperfeiçoou. Finalmente, só em MG existe uma superintendência (hoje dirigida por Fabiana Leite) dedicada à prevenção e à implementação do mais bem sucedido programa preventivo do país, o Fica Vivo, cujas raízes remontam a Cláudio Beato, à UFMG e ao coronel Augusto Severo. Não é à toa que a PM de Minas é considerada a melhor: sua liderança, a começar pelo cel. Renato de Souza, reúne na biografia e na prática, a universidade e a experiência policial. Tudo isso, mais o projeto ousado de policiamento comunitário e a contribuição municipal do ex-prefeito Fernando Pimentel, fez de Belo Horizonte e Minas Gerais exemplos, ainda que os resultados estejam aquém das conquistas institucionais e das realizações.
Urge estender a transição democrática às estruturas organizacionais da segurança, cristalizadas no infeliz artigo 144 da Constituição. Precisamos de novo modelo policial para lidar com a imensa complexidade dos desafios globais contemporâneos de uma sociedade democrática que se transforma velozmente. A boa notícia é que, conforme pesquisa que conduzi em 2009 com Marcos Rolim e Sílvia Ramos, a mudança do modelo policial é apoiada por 70% dos policiais brasileiros, contrariando o discurso conservador dos arautos do corporativismo. Só falta uma liderança política com peso nacional e a autoridade conferida pelo voto popular, disposta a meter a mão no vespeiro e puxar o fio da história.
(publicado em O Estado de Minas, no dia 11 de setembro de 2010. Escrito em 15 de agosto)

sábado, 4 de setembro de 2010

Pornopopéia, uma obra prima.

Henry Miller sofreu todo tipo de acusação, moral e política, e foi desqualificado como autor, antes de sua consagração literária internacional. Reinaldo Moraes conta com o respaldo de antecedentes desse porte. Por isso, sua obra prima Pornopopéia (Objetiva, 2009) pode driblar o corredor polonês moralista e a insensibilidade da crítica, e conquistar, de imediato, franca aclamação. Que boa notícia. Sinal enfim positivo dos tempos. Melhor para os tempos e para o Brasil. Sintoma da qualidade de nossa crítica. Digo tudo isso a título de introdução, porque o mais importante é que você leia o livro. Nesse caso, a introdução é também reforço. Eu a mobilizo em apoio a meu entusiasmo, para que você não o atribua a uma idiossincrasia qualquer ou à minha esquisita subjetividade. E assim conquisto mais facilmente sua confiança e me vejo em condições mais favoráveis para recomendar-lhe essa leitura. Na verdade, basta estimular você a abrir esse romance genial. O resto ele mesmo faz, com seu encanto irresistível, sua força extraordinária. A grande literatura tem esse poder estranho e fascinante. Ela o exerce às vezes em tom pastel, uma elegância blasé, como um planeta indiferente à sua própria potência magnética. Outras vezes, o texto esbanja autoconsciência e arranca você do solo, pelos cabelos, pelos dentes, e o arremessa no caldeirão da gravidade.
Pornopopéia é a odisséia de um Ulisses lúbrico e decadente ou incansável e onipotente. O personagem narrador sai de sua Ithaca, uma ilha de edição, para viver narrando ou narrar vivendo, com cortes ágeis e sedutores, suas idas e vindas ao quartel general da boemia, ao templo da suruba cósmica, e ao mercado do pó, da maconha, da bebida, das mulheres ímpares. Atrapalha-se, repete, insiste, reitera, posterga, rewind, forward, pause, conversa consigo mesmo pela mediação do leitor, num esforço de racionalização crescentemente alucinatória. Manobra a adição às drogas até ser manobrado, e acabar rebocado pela tragédia que atropela seu plano de dormir e acordar, acordar e dormir, lambuzar-se de ovos com bacon, sempre taxiando na pista herdada da véspera, sempre adiando a decolagem para outro arranjo existencial, outro plano de voo profissional.
Tendo a glória se furtado quando parecia ao alcance das mãos, o narrador não espera celebrar pactos fáusticos, trocando a vida pelo cardápio de delícias rabelaisianas. Ele já celebrou o tal pacto. Faz tempo. O que não se chega a saber é se o que lemos é o relato dos prazeres que antecedem a aterrissagem no inferno ou se é mesmo do inferno que se presta o testemunho naquele tom triunfante e refratário a qualquer vestígio de auto-piedade.
Quando se muda para o balneário litorâneo, começando a fuga que não terá termo, transfere sua torre de comando e sua cabine de controle da ilha de edição situada no apartamento térreo do prédio paulistano para a paisagem exuberante, em que reina a natureza. O atleta sexual converte-se no homem do mar: a mesma energia inesgotável. Mas ao contrário de Ulisses, não se amarra ao mastro. Pelo contrário, jamais hesita em lançar-se à convocação de todas as sereias, atendendo a todos os cantos, sempre turbinado pela erva e pelo álcool, ainda que, provisoriamente, longe do pó.
A Penélope que o aguarda lhe permitirá o exorcismo de seu momento Édipo, abrindo ao narrador as portas de entrada e de saída para essa espécie de maldição do escritor: a palavra não cessa de cumprir seu destino prestidigitador e ardiloso. Ela é engodo, manipulação, dissimulação e também gozo. Do sexo à palavra, os golpes começam a ferir mais fundo os vincos das biografias sugadas para a teia do narrador. Por fim, a palavra se desdobra em fios sobre os quais já não há controle. A segunda tragédia sobrevem, e a fuga da autoria acaba emaranhada numa trama de falsificações, impondo ao narrador a renúncia da escrita, a venda do computador, a transferência da autoria sobre o fim da história e o exílio da própria consciência. O narrador deixa de sê-lo para viver o personagem além da palavra, na dobra suja de uma noite que promete encerrar a carreira, até o limite da exaustão --da palavra, do pó, do gozo, da farsa, quiça agora repetida como tragédia.
O eclipse da voz confunde-se com errância e diluição líquida de limites. O mar sem ponta, ponte ou porto. A narrativa sem ponto final. Mar, palavra e vida sem salvação. Se antes era a vida que invadia o relato, com sua respiração, seus cheiros, sua volúpia, sua corporeidade, agora é o relato que bate em retirada para que a vida reine. E o corpo. Soberano e escravo de si mesmo. Finito. Horizonte de pedra contra o desejo infinito.

Parabéns, Reinaldo. Que inveja de seu talento.

LE

O que sugeri ao MP da Bahia

Nesta sexta, dia 3, dei uma palestra, promovida pelo MP da Bahia, a um grupo inter-institucional, formado para pensar e propor mudanças na segurança pública local, que não vai nada bem. Falei bastante, expus diagnóstico e propostas. O leitor ou a leitora interessada pode ler minhas últimas entrevistas (à Veja on line e ao Le Monde Diplomatique, Brasil), ambas postadas aqui mesmo, neste blog.
O que importa aqui é compartilhar a iniciativa que sugeri especificamente ao MP. Observo que venho defendendo essa ideia há vários anos, em palestras e conversas com amigos promotores e procuradores, Brasil afora. De meu ponto de vista, entre as diversas virtudes do MP, como instituição, destaca-se a autonomia de seus membros individuais. Por outro lado, sua falha talvez mais grave é a autonomia de seus membros individuais. Aí está a dor e a delícia de ser o que é, como dizia Caetano Veloso. Virtude e pecado, fonte de vitalidade e de inoperância, de força e impotência, garantia de liberdade e causa de dispersão. O MP priva-se, assim, de definir uma política e estruturar-se com organicidade, atuando com vistas a metas e prioridades segundo meios concertados. A política, nesse caso, tem P maiúsculo e se refere à identificação de compromissos constitucionais alheios a circunstâncias ou vínculos partidários.
Tomemos o caso do controle externo da atividade policial, que cumpre ao MP exercer por mandato legal. Qual tem sido, via de regra, respeitadas as variações regionais e ocasionais, o desempenho policial? Creio que poucos discordariam se eu respondesse: sofrível. E o digo ressalvando a competência de milhares de profissionais. A corrupção tem sido, em média, muito superior ao suportável, assim como a brutalidade, expressa sobretudo em execuções extra-judiciais. As taxas de esclarecimento de crimes são ínfimas, quando são conhecidas. O trabalho preventivo é amplamente suplantado pela reatividade. Examinemos a outra ponta, o MP. Qual tem sido seu desempenho no exercício do controle externo, respeitadas as variações regionais, locais e circunstanciais? Pífio. Em geral, reduz-se à "caça" de desvios de conduta individuais. Entretanto, tais desvios têm se revelado sistematicamente padronizados e previsíveis, tais suas escala e regularidade. Ou seja, os problemas não resultam de falhas individuais de comportamento. São ações rotineiras e institucionalizadas, mesmo que traiam a vontade dos comandos. São fruto de mecanismos que se reproduzem, alheios a eventuais esforços de contenção de corregedorias ou frágeis e raras ouvidorias.
Ora, se é assim, e se a responsabilidade do MP é zelar pelo cumprimento das determinações constitucionais, em cujos termos cabe às polícias garantir a fruição de direitos fundamentais, protegendo a vida e a liberdade pelo uso comedido da força, quando necessário (e na exata medida das necessidades, cujos limites extremos são a legítima defesa da própria vida e da vida de inocentes), a conclusão que se impõe é simples: cabe ao MP constatar que diversas polícias brasileiras não estão cumprindo seu mandato constitucional. E não o estão fazendo, insista-se, sistematicamente, ano após ano, independentemente dos comportamentos individuais (que merecem, é claro, atenção e abordagem jurídica adequada). Por que, então, nenhum MP estadual, até hoje, dirigiu-se à polícia, enquanto instituição, e ao governo estadual, que a comanda, cobrando o endosso de pelo menos um termo de ajuste de conduta, que se traduza em compromissos bastante objetivos, ainda que dispostos no tempo por um consistente e realizável plano modular?
Caso o plano de correção de conduta, fundamentado em um plano de reforma institucional coerente e viável, não seja apresentado ou, em sendo apresentado, não seja implementado conforme a previsão acordada, penalidades devem sobrevir, até o limite da intervenção federal. Para que se avalie a fidelidade ou não ao plano, o MP, com apoio de universidades e institutos de pesquisa, formaria gabinetes de acompanhamento e avaliação de performance policial.
Finalmente mas não menos importante, o respeito à dignidade humana, cidadã e profissional dos policiais, por parte dos governos e das polícias, deveria ser um dos critérios de juízo e uma das metas chave desse esforço de controle externo, em nome da segurança pública, do Estado democrático de direitos e dos direitos humanos.

LES