sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

A Próxima Década no Campo da (In)segurança Pública


(Publicado na Revista Época (27-dez-2010), que está nas bancas)

O que nos reservam os próximos dez anos? As principais tendências apontam para a nacionalização dos problemas, que deixam de ser exclusividade dos centros metropolitanos e se espalham pelo país. A epidemia das armas e, portanto, dos homicídios tem se deslocado para áreas de crescimento tardio mas acelerado, cujo desenvolvimento oferece oportunidades, ainda que o emprego para jovens continue exíguo. É o caso de cidades nordestinas e do Centro-Oeste ou do litoral fluminense, por exemplo. Se o petróleo deixou rastro de mudanças rápidas e desordenadas, aquecendo a violência (como em Macaé), o pré-sal pode intensificar esse fenômeno. As fronteiras tendem a ferver, sob a tensão dos tráficos, contrabandos e piratarias. Foz do Iguaçu é o caso emblemático. A questão do terrorismo se imporá por conta dos eventos internacionais e também porque a precariedade de nossos controles atrairá grupos que, pressionados em suas regiões de origem, busquem um recuo tático.
Enquanto o tráfico de drogas, envolvendo controle territorial e domínio de comunidades, tende ao declínio porque é anti-econômico, além de desnecessariamente arriscado, o negócio das drogas continuará prosperando, em um formato nômade, mais leve e menos perigoso, como ocorre nas democracias mais avançadas.
A insuficiência dos salários pagos aos policiais continuará a empurrá-los para o bico na segurança privada, o que, sendo ilegal, obrigará as autoridades a conviver com o ilícito, para evitar demanda salarial e colapso orçamentário. Essa tolerância, ao gerar uma área de sombra, manterá fora do campo de fiscalização os policiais que se aproveitarem disso para provocar insegurança e vender segurança, ou para formar grupos de extermínio, ou ainda para se organizar como milícias. Tais máfias tendem, portanto, a uma expansão viral, estendendo tentáculos políticos e se infiltrando em outras instituições públicas.
O sistema político-eleitoral, como se sabe, estimula a corrupção. Nesse ambiente, os crimes de colarinho branco tem prosperado e tendem a avançar, porque as barreiras às ilegalidades, progressivamente derrubadas, abrem espaço para novas conexões entre distintos tipos de crime organizado, produzindo configurações mais complexas e ameaçadoras.
A homofobia parece ganhar força, na exata medida em que novos direitos se afirmam, suscitando reações perversas em grupos culturalmente vulneráveis aos racismos e preconceitos --o mesmo valendo para a violência de gênero e a brutalidade contra crianças. A praga do crack somada à nossa hipócrita política de drogas tendem a acelerar a criminalização da pobreza, no contexto marcado pela seletividade das ações policiais e pela profunda desigualdade no acesso à Justiça. O aumento veloz da população carcerária incrementará a degradação ainda maior do sistema penitenciário e jogará na carreira criminal mais e mais jovens presos por pequenos delitos não-violentos. A corrupção policial e a brutalidade letal, bases de sustentação de tantos crimes (a começar pelo tráfico de drogas), crescerão se forem mantidas as atuais estruturas organizacionais das polícias, refratárias à gestão racional e ao controle externo. A desvalorização da perícia, comum em boa parte do país, continuará reduzindo prisões ao flagrante e inviabilizando investigações.
As boas experiências em alguns estados, como as UPPs, e em vários municípios tendem a não se generalizar nem aprofundar, porque se realizam apesar do modelo policial e da arquitetura institucional da segurança e não graças a eles.
O que fazer para prevenir esse cenário? Sabemos que há necessidade de políticas multi-setoriais, porque os dilemas se inscrevem em diferentes dimensões da vida social, do emprego à educação. Vou me concentrar na área mais específica, avaliando o passado recente.
Os oito anos de Lula na presidência foram antecedidos pela divulgação de um plano nacional de segurança pública, que o primeiro mandato ensaiou implementar, mas optou por abandonar, e o segundo retomou, parcialmente, esvaziando-o das propostas mais ambiciosas e potencialmente geradoras de conflitos. O plano firmava o compromisso de propor ao Congresso que alterasse o artigo 144 da Constituição, transformando, assim, a arquitetura institucional da segurança pública, que priva a União de maiores responsabilidades, exclui os municípios e condena as polícias estaduais à reatividade, à rivalidade, à repetição inercial de velhos padrões ineficazes e ilegais, ao voluntarismo espasmódico e ao descontrole. O modelo policial com duas meias polícias, a civil e a militar, impede a gestão racional, legalista e eficiente.
No segundo mandato, o ministro da Justiça, Tarso Genro, implementou o programa nacional de segurança com cidadania, destacando a prevenção e o papel dos municípios. Na secretaria nacional de segurança pública, Ricardo Balestreri criou a rede nacional de ensino em segurança pública, o mais bem sucedido esforço de qualificação dos profissionais da área. As reformas institucionais, entretanto, ficaram fora da agenda.
Impossível prever o que fará a presidente Dilma Roussef. Os governos federais –sem exceção-- têm se esquivado de enfrentar o desafio das reformas. Resta a pergunta: o Brasil, que já enfrenta tantos gargalos --infra-estrutura, educação, sistemas tributário e político--, suportaria o cenário prospectivo que expus? A próxima década parece começar sob o signo da falta de vontade política para dirigir e celebrar um pacto nacional supra-partidário em torno de transformações institucionais inadiáveis, na segurança. Por outro lado, a década promete avanços sociais e econômicos aos quais corresponderá a exigência de que as lideranças políticas (e a sociedade) encarem com mais coragem, lucidez e espírito público suas responsabilidades. A pressão do processo histórico contra os gargalos ou nos condena ao atraso e ao eterno retorno da violência ou nos força a encarar a sério nossas debilidades para corrigi-las. Digo isso com otimismo, confiando na potência criativa dessa contradição.

domingo, 19 de dezembro de 2010

Memórias de um Presente Remoto

--Sobre o livro A Dona das Chaves, uma mulher no comando das prisões do Rio de Janeiro, de Julita Lemgruber, com Anabela Paiva  (Editora Record, 2010). 
--Originalmente publicado no caderno Prosa e Verso (O Globo), em 18 de dezembro de 2010
           
             Há muito tempo Julita Lemgruber nos devia um relato extenso sobre sua vasta experiência no sistema penitenciário. Ela já escrevera uma obra acadêmica, Cemitério dos Vivos, sobre o presídio feminino, Talavera Bruce. Mas faltava a narrativa mais ampla, que incorporasse o período em que esteve à frente do Sistema Penitenciário do Estado do Rio de Janeiro. Um relato que fosse também memória e testemunho da mulher que se afirma como agente político de transformações, sem renunciar à responsabilidade da gestão; da militante dos direitos humanos que hesita, chocada com as condições a que o Estado submete os presos, mas resiste ao desespero de seguidas frustrações e prossegue, obstinada, para reduzir danos, violações, sofrimentos e ilegalidades.
O livro é notável. Flui numa linguagem envolvente, precisa e emocionante, graças à parceria com a jornalista Anabela Paiva, ourives da palavra e madura no tratamento dessa matéria espinhosa e árida, a segurança pública, que ela domina como poucos. A obra será mapa imprescindível para quem quiser conhecer, por dentro, o mundo esquecido do cárcere, em nosso passado recente. Escrevi passado e vacilo: é de presente que se trata, um presente carregado de ruínas, espécie de inconsciente social fora do tempo, habitando uma cavidade da história. Um presente que, embora ostensivo e eloquente, não se deixa verbalizar. Dor coletiva recalcada e sem luto, que retorna para assombrar o sono da cidade. Imagem invertida da virtude sem a qual não seria possível o maniqueísmo, em cujos termos o mal é o Outro. Passado enraizado em cada um de nós como destino atávico --compulsão à repetição. Filme que todos já vimos: masmorras escuras, úmidas, cheirando a ossos incinerados e dejetos. Com horror descobrimos que, sim, são humanos os restos em andrajos que esquecemos lá no fundo desses buracos da razão e da memória. São animais expiatórios que frequentam o limiar. Cometeram barbaridades, alguns? Pois agora, esse quadro dantesco das penas, o presídio, é produzido por nós. A barbárie, agora, é nossa. Melhor não olhar. Melhor meter os cárceres pestilentos no cofre e jogá-lo ao mar. Mas a dona das chaves mergulha, abre de novo cofre e feridas para que, no espelho do Outro, nos espantemos com a intensidade da violência de que somos capazes --nós, os sãos, homens e mulheres de bem, governos de esquerda, cidadãos democratas. Por isso, Julita passaria a dedicar sua vida à defesa de penas alternativas à privação da liberdade para autores de crimes não violentos.
Há o lado solar disso tudo. A vida que pulsa nas prisões, a generosidade de alguns guardas, técnicos e gestores, a persistência de militantes, a vocação saudável de presos que resistem à moenda material e espiritual. Contando sua trajetória nos dois governos Brizola (1983-1986 e 1991-1994), Julita descreve a saga de um bando de sonhadores humanistas, que abandonaram o conforto do debate ideológico, arregaçaram as mangas e foram à luta para mudar a realidade vergonhosa de brutalidade e corrupção. Sem paternalismos, mas com sensibilidade e respeito, usando a legalidade como bússola e limite, sem confundir o necessário rigor com a violência arbitrária, sem misturar disciplina com terror e humilhação. Por outro lado, o grupo admirável não passava de um Exército de Brancaleone, lutando até o limite de suas forças, ante a indigência dos recursos. O grande paradoxo devastou ilusões: os governos Brizola, que ergueram a bandeira dos direitos humanos, não foram muito diferentes dos outros, na recusa a sustentar com investimentos materiais os valores cultuados nos discursos. Coube a esse grupo de devotados e destemidos fazer das tripas coração para estreitar a distância entre a palavra governamental e o compromisso prático. Mais uma vez ficava claro que presos e presídios não têm vez. Mas os Brancaleones fizeram a diferença, a despeito de tudo. A saga da mulher cuja lucidez só é suplantada pela coragem valerá para a sociedade brasileira como exemplo e inspiração.

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Quem tem medo de Cláudio Ferraz?


Apresentação de Cláudio Ferraz que escrevi para a Revista Época
(um dos 100 brasileiros homenageados)

Magro e sereno como um David Niven dos trópicos, Cláudio Ferraz recusa os tranquilizantes tarja-preta que lhe sugerem, nos momentos de tensão máxima. Prefere exercitar-se, como convém a um faixa preta em jiu-jitsu, instrutor de boxe francês, expert em tiro, íntimo das técnicas de operações especiais, mestre em resgate de reféns e mergulhador tarimbado. O corpo deve manter-se ágil e certeiro para acompanhar a velocidade com que a cabeça dispara seus comandos. Quem disse que basta inteligência e capacidade investigativa? Esta é uma das lições aprendidas na Escola de Oficias da reserva da Marinha, do Corpo de Fuzileiros Navais. Incansável e perfeccionista, o delegado titular da DRACO (Delegacia de Repressão ao Crime Organizado, da Polícia Civil do Rio de Janeiro) ostenta, entretanto, uma fraqueza constrangedora: caso precise sussurrar uma informação, no front, sua voz de barítono colocará em risco a operação. Esforça-se por domesticá-la, dobrá-la, guardá-la no cofre, metê-la no bolso, mas ela se esquiva, rebelde, como um elástico sonoro fosforescente. Talvez a voz indomável de cantor de ópera seja o sintoma de uma conta que não fecha: como caberia tamanha obstinação em um metro e setenta e dois, sob o constante terno escuro e a gravata discreta?
Ninguém é tão temido e detestado pelas milícias do Rio de Janeiro, essas máfias cruéis, compostas por policiais, que tiranizam e exploram comunidades pobres, humilhando, torturando e assassinando. Nenhum outro policial carioca prendeu tanto miliciano e desbaratou tantas redes do crime organizado sob sua forma mais grave. Cláudio, com sua equipe da DRACO, foi responsável por mais de 400 das 500 prisões de milicianos efetuadas desde 2007.
Foi uma honra tê-lo como parceiro na realização do livro, Elite da Tropa 2, ao lado de André Batista e Rodrigo Pimentel.

domingo, 12 de dezembro de 2010

Introdução a meu livro, Segurança Tem Saída (Sextante, 2006)



Você me permitiria tentar adivinhar o que passa por sua cabeça? Com todo o respeito à sua individualidade e à originalidade de seu pensamento, tomo a liberdade de ousar uma especulação, só como um teste. Uma espécie de jogo. Você dirá se cheguei perto, está bem?
Aposto que você acha que segurança pública não tem jeito. Não tem saída. Que as coisas estão cada vez piores e que não há luz no fim do túnel. Em políticos e governos, você não acredita mais. Nas polícias, menos ainda. Os casos de corrupção se multiplicam. Até superintendentes da polícia federal aparecem nas manchetes dos jornais, protagonizando casos escabrosos. Claro que você admite que há muita gente séria, honesta e competente nas polícias. E até reconhece que há gente honrada na política. Mas você duvida que esses gatos pingados sejam capazes de fazer a diferença e mudar alguma coisa. Eles estão perdidos num oceano de desmandos e ineficiência.
Você olha para as elites e vê lavagem de dinheiro e uma fauna variada de criminosos de colarinho branco. Olha para as camadas populares e vê tráfico, armas, violência, em um ambiente marcado pela ausência do Estado: desemprego, falta de acesso à educação, maternidade precoce, infância abandonada, baixa auto-estima generalizada revertendo em culto à violência, famílias em crise, condições sociais dramáticas.
Quando você pensa que algum personagem poderoso finalmente foi preso, logo descobre que ele está sendo beneficiado pelo inacreditável instituto da “prisão especial” ou que está se beneficiando de prerrogativas que lhe permitem aguardar exame de recursos em casa. Enquanto isso, você percebe que um rapaz pobre e negro, que tentou furtar uma bicicleta continua preso há meses, à espera de julgamento.
As notícias que chegam das penitenciárias parecem filme de terror, assim como são atos de terror aqueles promovidos por facções comandadas do interior das prisões e que conseguem parar São Paulo, a maior cidade do país.
Você não vê nenhuma providência de vulto, que envolva os recursos e a mobilização de instrumentos de poder correspondentes ao tamanho do problema. Os governos desconversam e empurram com a barriga. E o problema vai se agravando, cada vez mais. Você já não agüenta mais retórica, conversa fiada e promessas. Quer ação. Quer solução. E quer isso já, agora, imediatamente. Afinal, você tem de chegar em casa, hoje, em segurança. Seus filhos também.
Se você pensa assim, ou mais ou menos assim, é com você mesmo que eu quero conversar. É a você que se dirige esse livro.
Concordo com quase tudo o que você pensa. Só discordo de um detalhe, que é, na verdade, essencial e faz toda a diferença: estou convencido de que, apesar de tudo, existe saída, sim! Tenho convicção de que a saída é a implantação de um programa, envolvendo vários tipos de ações simultâneas, em diversas áreas. Por isso, acho que deveríamos unir as nossas forças e apoiar esse programa, porque ele é perfeitamente factível. Acredito que ele seria capaz seja de produzir resultados imediatos, seja de pavimentar o terreno para as transformações mais profundas, sem as quais os problemas vão se reproduzir cada vez com mais intensidade. Por essa razão, acho que deveríamos difundir as propostas contidas nesse programa e exigir que os políticos e gestores públicos se comprometessem a colocá-las em prática.
Não pense que sou ingênuo. Sei que nada disso será fácil. Estou nessa batalha há muito tempo. Tempo suficiente para ter aprendido, na prática, que não será fácil. Mas tempo também suficiente para ficar convencido de que esse programa é realista e factível, sim.
Vamos ver se depois de ler este pequeno livro, você vai concordar comigo e se animar um pouco mais. Isso será muito importante. Até porque parte do sucesso do programa depende do apoio e da confiança da opinião pública, quer dizer, depende, em alguma medida, do seu apoio e de sua confiança.
***
Antes de lhe explicar as idéias que defendo, quero alertar para um perigo. Se você não quer resolver um problema, defina-o de um modo muito complicado e distante de seu poder de intervenção. Se a gente faz assim, pronto: o problema vira um embrulho depositado em algum futuro distante. Este gesto corresponde mais ou menos a esconder um objeto perigoso bem longe do alcance das crianças, lá na prateleira mais alta do armário.
Vou lhe dar um exemplo e acho que você vai entender o que quero dizer, sobretudo se tiver uma filha adolescente: sabe qual o melhor método que uma adolescente insegura pode adotar para ficar longe dos meninos, dos namoros e dos riscos de ser rejeitada? Ficar apaixonada por um menino mais velho, completamente inatingível, ou por um astro de cinema, de preferência que more em outro continente. Assim, o coração e a cabeça estarão ocupados e não haverá espaço para mais ninguém. O que existe nesse caso, de real, não é o afeto pelo ídolo, mas a necessidade de proteger-se do amor possível, porque esse pode dar certo e aquilo que pode dar certo, também pode dar errado, e se der errado é doloroso à beça e fere o amor-próprio. A paixão adolescente pelo ídolo é um modo de enganar-se a si mesma, fingindo que não é medo, mas amor, o medo que deveras sente. Muita gente carrega essa armadilha consigo a vida toda. A insegurança e o medo de sofrer é que provocam as paixões impossíveis.
O que é que os romances de nossas filhas têm a ver com segurança pública? Os romances, nada, mas a atitude tem tudo a ver com nosso modo mais comum de não resolver o problema. Sabe a que atitude me refiro? Àquela bem conhecida, que se expressa mais ou menos assim: “Para resolver o problema da segurança é preciso transformar as estruturas sociais brasileiras, porque enquanto nosso país for como é hoje, qualquer iniciativa na segurança será apenas um paliativo, sem nenhum valor”. Para algumas cabeças adolescentes, não basta que o menino seja mais velho e estude em outra escola; é preciso que more na Europa e seja um astro de cinema bem casado com a estrela da moda. Essas meninas que têm medo de amar são iguaizinhas àqueles que, nos debates sobre segurança, começam falando da natureza humana e terminam esbravejando contra o imperialismo norte-americano e o capitalismo globalizado neo-liberal. Pronto. O pacote está bem amarrado e foi jogado ao fundo do mar. Qual maluco se disporia a mergulhar nessas águas turvas e profundas? Reconhecer a necessidade de mudar o mundo como pré-condição para uma realização específica, significa condenar-se à impotência e ao imobilismo.
Proponho que nos inspiremos naquele provérbio que nos ensina a dar um passo de cada vez e a não definir a caminhada por sua extensão máxima. Se o alcoólatra se impuser a obrigação de não beber nunca mais, terá mais dificuldade de não beber nunca mais do que se tiver a humildade de definir seu objetivo de tal maneira que ele pareça e seja mais acessível, prometendo a si mesmo não beber hoje, nestas vinte e quatro horas.
Como nós não vamos mudar o mundo e o Brasil tão cedo, muito menos a natureza humana, seria mais prudente identificar objetivos factíveis e começar a avançar em sua direção. Um objetivo factível é reduzir a violência, salvar vidas e gerar um ambiente mais saudável, pacífico e respeitoso. Para mim, isso representaria muito, muitíssimo. Acredito que para você também.
Então, vamos colocar um problema de cada vez, ainda que iniciativas simultâneas sejam sempre necessárias, para que cada passo seja viável e cumpra seus objetivos pequenos e realistas. Podemos tornar as polícias melhores do que são?  Mais eficientes, mais honestas e confiáveis, menos violentas e mais capazes de valorizar seus profissionais? Podemos adotar políticas públicas mais inteligentes e eficientes na prevenção da violência, mesmo com poucos recursos? Podemos combater com mais eficácia a lavagem de dinheiro e as conexões entre o crime, a polícia e a política? Haveria algumas medidas capazes de causar prejuízo a essa gente, bloqueando pelo menos algumas de suas práticas? Haveria como lidar com o ciclo vicioso dos crimes mais graves, interceptando a dinâmica que os realimenta? Poderíamos viver em um país em que se andasse pelas ruas com menos medo? Um país em que houvesse menos violência doméstica, contra as mulheres? Em que os negros não sofressem tanto os efeitos perversos do racismo e a homofobia fosse quase apenas lembrança amarga de um passado preconceituoso? Um país em que as escolas funcionassem e mantivessem as crianças e os adolescentes interessados, o dia inteiro, em atividades de ensino, arte, cultura, esporte e lazer? Um país com mais oportunidades e menos armas, menos mães precoces e menos uso irregular do solo, que agride o meio ambiente e impede o planejamento urbano? Em que a política fosse uma prática menos degradada? Em que os governos fossem um pouquinho mais decentes e eficientes? Em que a estrutura do Estado não se limitasse a secretarias e ministérios, que são feudos, rivais entre si, e por isso acabam bloqueando a aplicação de políticas públicas integradas e coordenadas? Um país em que o acesso à Justiça fosse menos desigual? Em que a política criminal fosse menos refratada por filtros de cor e classe? Seria possível tornar o Brasil um país menos injusto e um pouquinho mais capaz de respeitar suas próprias leis? Seria possível fazer com que as leis valessem realmente para todos?
Possível seria. Outros países conseguiram. Estamos dando ainda os primeiros passos em nossa trajetória democrática, que é tão recente. Todos os objetivos listados acima são importantes e estão ligados entre si. Mas se tentarmos alcançar todos eles ao mesmo tempo, com uma só fórmula –seja ela a diminuição do Estado, seja ela a socialização dos meios de produção, ou qualquer outro modelo de grandes pretensões, não chegaremos a lugar nenhum.
Temos de começar a caminhar na direção de todos esses objetivos, sabendo que cada um exigirá sacrifícios, perseverança, muita pressão da opinião pública, vontade política, programas específicos inteligentes e ampla participação da sociedade. Vamos ter de ousar bastante, senão continuaremos patinando.
Ousadia não significa sectarismo político. Sem negociações, entendimentos, alianças e acordos em torno de objetivos pontuais, não haverá força suficiente para promover nenhuma mudança. Vamos errar, aprender com os erros e recomeçar. É assim que os países avançam. Depende também de nós. Fazer-nos de vítimas da maldade alheia, da corrupção alheia, da incompetência alheia, é muito ruim e não resolve. Só faz nos sentirmos superiores e isentos de culpa. E omite o fato de que somos todos, em alguma medida, co-responsáveis. Vamos arregaçar as mangas e construir essa outra realidade, mas com os pés na terra e avançando passo a passo, deixando a retórica de lado e pensando em soluções objetivas, ainda que sempre parciais e insuficientes. Um dia de cada vez. Sem ilusões. Com os pés no chão. Mas também sem essa descrença e essa apatia, que só colaboram para que tudo continue como está. Ou piore.
Insisto no passo a passo e falo em programas. Não há contradição. Bons programas são modulares, ou seja, respeitam os estágios, os passos, as transições, as nuances, as sutilezas, as idas e vindas. O fato de abandonarmos os discursos utópicos e os modelos pretensiosos que prometem soluções completas e globais não significa que estejamos abandonando a racionalidade dos programas. Uma prática sem um programa que a oriente é um caminhar às cegas, sem rumo. É puro improviso. Na política, isso se chama voluntarismo e tem sido uma das maiores pragas nacionais. Sobretudo na área da segurança.
***
Para que você saiba de onde vieram essas idéias que, juntas, formam esse tal programa de que lhe falo, seria bom que lhe contasse o seguinte: eu não as inventei. Elas estão por aí, circulando em muitas cabeças e sendo, várias delas, testadas em muitas experiências, realizadas no Brasil e no exterior.
No Brasil, as melhores experiências, curiosamente, têm sido aquelas realizadas na esfera municipal. Destaque-se aqui a experiência conduzida pela secretária Regina Mikki e o prefeito José de Filipe, em Diadema. Ao nível do Estado, a mais fértil, consistente, ambiciosa, inteligente e de perfil sistêmico, apesar de graves dificuldades e limitações, tem sido a de Minas Gerais, sob a batuta de Luiz Flávio Sapori, Antônio Augusto Anastasia e do governador Aécio Neves. Não poderiam ser esquecidas as iniciativas pioneiras do saudoso Cel. Carlos Magno Nazareth Cerqueira, a lucidez e a transparência de Helio Luz, o êxito do GPAE, sob a liderança exemplar do Ten-Cel. Antônio Carlos Carballo Blanco, no Rio de Janeiro, e os projetos piloto vitoriosos do Cel. Augusto Severo, em Belo Horizonte.
No exterior, alguns dos destaques têm sido Bogotá, Boston, nos anos 1990, e Nova York, os consórcios locais italianos, os contratos de gestão franceses, os experimentos preventivos ingleses e a ouvidoria irlandesa. Tem havido experiências interessantes no Uruguai, em Santiago do Chile, no Peru, no Panamá, na cidade do México.
Meu esforço tem sido, nos últimos 15 ou 20 anos, reunir esse conhecimento e essas experiências, buscando aprender com quem faz, com os que viveram o dia a dia. Eu próprio acabei me tornando gestor de algumas dessas experiências e procurei fazer a minha parte – a este respeito escrevi o livro Meu Casaco de General; 500 dias no front da segurança pública do Estado do Rio de Janeiro (Companhia das Letras, 2000). Deixei de ser professor e pesquisador e meti a mão na massa. Acertei e errei. Procurei ouvir, com humildade, todas as partes envolvidas no drama coletivo da violência. Dialoguei com as famílias que perderam seus filhos, em todas as frentes dessa guerra insensata. Conversei esses anos todos com policiais e traficantes, juízes e defensores públicos, promotores e agentes penitenciários, presos e funcionários das entidades sócio-educativas, conselheiros tutelares e professores, agentes de saúde e secretários de segurança, peritos e pesquisadores, psicólogos e psicanalistas, médicos e guardas municipais, governadores e prefeitos, deputados e senadores, e até com dois Presidentes da República.
Meu trabalho não passa de uma síntese e de uma sistematização do que encontrei de melhor, do que alcançou os melhores resultados. Claro que com adaptações aos dois focos desse livro: as urgências nacionais, em seu conjunto, e o estado do Rio de Janeiro, em particular.
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Só lhe peço um favor. Antes de começar a ler, lembre-se de que as instituições que existem nasceram um dia e vão morrer um dia. Elas não são eternas, nem naturais. São artifícios humanos, criados para resolver alguns problemas, de forma justa ou injusta, a favor de alguns ou de todos. Isso significa simplesmente o seguinte: se as instituições deixam de funcionar, isto é, deixam de resolver problemas e se tornam parte dos problemas, ou se o tipo de solução que oferecem não interessa a todos -ou seja, não é justa-, temos de mudá-las, de substituí-las por outras.
Quando, por alguma razão, as condições tornam impossível mudá-las e substituí-las, temos de mudar essas condições. Seria um absurdo nos resignarmos, como Nação, à impotência.
É o que acontece, hoje, com as polícias, as penitenciárias, as entidades sócio-educativas, a política criminal e a política de drogas. Não funcionam. Temos de mudá-las. Temos de substituí-las por outras.
Vamos deixar de meias palavras. Reformas superficiais não bastam.
Podemos fazer isso? Podemos ir tão fundo, tão longe, com tanta radicalidade? Sim, podemos. Outros países fizeram isso e o mundo não acabou. Melhor fazermos logo, antes que o mundo desabe sobre nossas cabeças. Aliás, já está começando a desabar. Não temos muito tempo. Possível é. Quem diz que não é ou tem preguiça de pensar, ou ignora as experiências mundiais, ou não conhece a gravidade de nossa situação, ou está interessado em manter as coisas como estão, por conveniências corporativistas.
Mas não pensem que advogo o desemprego em massa para os profissionais da justiça criminal e da segurança pública. Nada disso. Mesmo com as mais profundas transformações, seus direitos trabalhistas podem e devem ser garantidos. Um novo processo de capacitação deve se impor a todos. Mas isso não significa exclusões de quem não tem o que temer, diante da Justiça. Pelo contrário, no novo contexto gerado pelas mudanças, os profissionais seriam respeitados e valorizados como nunca foram em nosso país.
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Haveria diferentes formas de lhe apresentar minhas propostas para a segurança pública e as razões que as justificam: um tratado técnico, um relatório acadêmico, uma pesquisa científica, uma coletânea de relatos, com testemunhos e denúncias, uma ficção que leve o leitor ao fundo do inferno para que sinta bem de perto as emoções e o cheiro da realidade (parece uma contradição, mas não é: às vezes, nada é mais real do que a ficção). Já tentei todos esses caminhos. Alguns foram mais eficientes do que outros, mas nenhum foi capaz de explicar, com a clareza necessária, o que acredito que deva e possa ser feito para solucionar esse impasse – a insegurança crônica- que nos assusta, provoca tanto sofrimento inútil e trava os passos do país.
Escolhi uma estratégia diferente. Imaginei um conjunto de reportagens e entrevistas fictícias escritas em um futuro próximo.
Intercalei essas imaginárias “notícias do futuro” com lembranças do passado, lembranças verdadeiras, para compartilhar com você um retrato revelador e menos conhecido dos bastidores do poder. As cenas de bastidor, todas verídicas, comprovam a gravidade da situação e mostram algumas ligações entre política, polícia e crime. Resolvi incluir essas narrativas em primeira pessoa para que você entenda as razões pelas quais as mudanças que proponho teriam de ser tão amplas e drásticas.
Um dos personagens das “notícias do futuro” é um futuro presidente da República; outro, um futuro governador do Estado do Rio; há também uma secretária de segurança e um deputado federal. Esses personagens imaginários agem e falam para implantar e explicar as propostas desse programa que defendo e que desejo lhe apresentar. Acho mais interessante ouvir essas explicações desse modo, através da voz desses personagens, porque tudo fica mais compreensível, claro, palpável e vivo. São personagens do meu sonho. Dizem e fazem o que eu gostaria que presidentes, governadores, secretários e deputados dissessem e fizessem.
Os protagonistas são figuras improváveis, mas não impossíveis: dois governantes sensatos e corajosos, honestos e dispostos a sacrificar suas respectivas carreiras para salvar o Brasil e, em particular, o Rio de Janeiro. Uma secretária de segurança serena, objetiva e, ao mesmo tempo, ética, profunda e revolucionária. Não ria. Você sabe que milagres às vezes acontecem. Sobretudo quando o que ocorre se passa na dimensão humana. Talvez você tenha esquecido, talvez todos nós tenhamos esquecido, mas os seres humanos também possuem virtudes. E as mulheres e homens públicos, também.
De todo modo, garanto que não pensei em nenhum plano mirabolante, que exija heróis ou santos. Só uma pitadinha de inteligência e ousadia. Não é muito. Sobretudo tendo em vista a situação atual e a magnitude do que está em jogo.
Ah! Ia passando por cima de um dado óbvio mas freqüentemente omitido: somos um país democrático - pela primeira vez em nossa história- há pouquíssimo tempo. Nossa Constituição –a primeira realmente democrática, apesar de suas limitações- foi promulgada em 1988. Os países que vivem uma democracia consolidada acumulam experiências seculares e ainda tropeçam. Como democracia, somos super-jovens. Quase tudo está ainda por construir. É muito cedo para jogarmos a toalha.
Passo imediatamente às notícias imaginárias de um futuro próximo, intercaladas por flashes de memória que retratam algumas situações que vivi há não muito tempo, nos bastidores da segurança pública. Futuro e passado dialogam, indiretamente.
Na segunda parte do livro, você encontrará um breve diagnóstico da criminalidade e das instituições da segurança pública, seguido de uma apresentação sumária e sistemática das propostas que você conhecerá, primeiro, sob a forma dos relatos jornalísticos ou das entrevistas imaginários. Decidi incluir a versão didática porque, apesar da redundância ao nível do conteúdo, ela pode facilitar a consulta e a organização de sua própria memória. A primeira parte provavelmente deixará você com uma impressão confusa, em função da profusão de idéias, argumentos e iniciativas narradas. A segunda exibirá a ordem que liga as propostas entre si.