Meu querido mestre, Luiz Costa Lima, recebeu de um amigo a carta-depoimento sobre o que a velha direita está fazendo no Chile, hoje. Considerando o interesse público do relato, fui autorizado a postar o trecho abaixo.
Caro Luiz,
Tudo bem? Estou em Santiago desde o dia 29 de julho.Vim convidado a dar um curso de Pós de 7 aulas na Universidad de Chile. No dia 4, quando devia dar a 1a. aula, a Faculdade foi fechada devido à grande manifestação dos estudantes secundários e universitários que estão em greve lutando pela reestatização do ensino no país. Você deve ter lido, o Estado financia a educação, do ensino primário à pós-graduação, com cerca de 10%. O restante é pago. Essas medidas foram tomadas desde a última ditadura,me informaram, e a grande maioria dos estudantes está inadimplente, sem condição de continuar estudando. A direita no poder faz o jogo dos interesses privados, demonstrando que o Bolívar do Garcia Márquez realmente é uma síntese magnífica do estado de coisas tucano. O governo proibiu as manifestações estudantis, mas quase 200 mil jovens saíram às ruas, na Alameda, perto do palácio de La Moneda, no dia 4, de manhã e à noite. Houve tropa de choque, cavalaria, cães, cassetetes, canhões de água e gás lacrimogêneo, milhões de litros de gás, que fizeram a cidade irrespirável. Estou num apartamento a uns 4 km do centro, mas, na manhã da quinta, o gás picava o nariz e fazia a gente lacrimejar. A passeata dos estudantes foi pacífica, mas um grupo de encapuzados começou a vandalizar, incendiando carros e destruindo edifícios de apartamentos, na região da passeata, para saquear coisas e pessoas. No meio deles, um repórter filmou um sujeito que foi identificado como sendo um coronel dos carabineros. Imediatamente, o chefe da polícia e o Ministro do Interior, um tipo nazi de belo nome, Hillzpeter, foram à TV e declararam que o cara era um agente da polícia infiltrado no movimento estudantil para espioná-lo, cumprindo seu dever de detetive etc. Mas vimos claramente visto, na TV, o cara quebrando vidros com um porrete, jogando pedras em polícias etc. E assim foi a minha primeira semana aqui. Na semana passada, finalmente, foi a primeira aula, também na quinta, dia 11. Eu pensava que estava furando a greve, mas os alunos e os professores me tranquilizaram, dizendo-me que não. Numa assembléia dos estudantes, foi decidido que os estudantes de Pós matriculados em cursos de professores visitantes deviam segui-los. No dia 11, a aula começou na Faculdade de Letras, em Ñuñoa, às 18 h. Devia terminar às 20:30 h, com mais meia de discussão. Eram umas 19:40, meus olhos começaram a doer e minha garganta ficou seca. Vi que os alunos lacrimejavam e tossiam. Lá fora, estudantes jogavam coquetéis Molotov na rua, tentando impedir o tráfego. A polícia interveio, novamente com o gás lacrimogêneo. Foi tanto que ocupou os 5 andares da Faculdade. Saímos correndo da sala e fomos para uma sala de reuniões que não tem nenhuma janela e nos fechamos lá. Depois de meia hora, tentamos sair. Os elevadores eram impossíveis, cheios de gás. Descemos pelas escadas cobertas por uma névoa branca e densa de gás, tossindo muito. A professora e o professor que me convidaram me levaram ao carro de um deles e saimos correndo dali, com os vidros fechados, tossindo e chorando. Só depois de uns 10 quarteirões pudemos abrir os vidros e respirar. Eles me pediram desculpas e eu, obviamente, lhes disse que não tinham nada de que se desculpar porque nada têm a ver com a direita. Peguei uma bela gripe alérgica. Meus olhos ficaram de quinta ruins até hoje, quando comecei a tentar ler e vi que conseguia sem doer demais e lacrimejar. Ainda doem um pouco. Ontem vi o presidente Piñera na TV. Declarou que nem tudo pode ser grátis, argumentando que, se a educação for pública e gratuita, é certo que os mais ricos vão estudar às custas dos mais pobres que pagam impostos. O cinismo é total. Como no Brasil, na China, nos EUA, na França, global. Minha mulher está aqui e tem me falado das coisas do Brasil que tem lido na Internet. Só com guilhotina, acho. Agora, vamos ver o que vai ser a próxima aula, que foi antecipada para a 3a.feira, porque na 5a. vai haver novas manifestações.
Fique bem, com o meu abraço.