(Artigo originalmente publicado no site www.no.com.br, em setembro de 2001. Posteriormente, incluído em meu livro, Legalidade Libertária –Lumen-Juris, 2006.)
Cada um de nós tem suas razões para se emocionar com o crime bárbaro do dia 11 de setembro de 2001, que derrubou as duas torres do World Trade Center e talvez tenha encerrado um capítulo da vida humana no planeta. Alguns choram a perda de amigos, outros sofrem ante mais uma demonstração de insanidade, outros se horrorizam ante os prováveis desdobramentos catastróficos, em todo o mundo, e se solidarizam com a dor das vítimas e de seus familiares.
Eu me sinto pessoalmente envolvido, porque tenho uma dívida de gratidão pendente. No momento mais difícil de minha vida, em março de 2000, quando a segurança de minha família estava em risco, no Rio de Janeiro, fui acolhido pela cidade de Nova York -generosa, cosmopolita, progressista, anti-racista, anti-homofóbica e anti-misógina, a despeito dos vários episódios que traem esse compromisso. Esses casos, essas traições, justamente por agredirem a sensibilidade pluralista dominante, causam indignação na opinião pública novayorkina.
Meu irmão, cientista da área bio-genética, viveu 18 anos na cidade. Poucos lugares do mundo acolhem a diversidade, a ousadia, a criatividade, a crítica radical, e os imigrantes de todas as cores e todas as procedências, com mais tolerância, com um espírito mais democrático. Certamente, Nova York é a capital do capitalismo, matriz de tantas perversidades e injustiças, porém, aqueles que se identificam com a tradição da esquerda humanista devemos recordar que a cidade é também um símbolo talvez incomparável do respeito à diferença.
Escrevo, portanto, com o coração. E foi também com o coração que senti o segundo impacto, dia 11. O primeiro foi a tragédia. O segundo, a reação de tantos interlocutores e amigos, todos humanistas e progressistas, à tragédia. A ruína dos prédios e o sacrifício de milhares de vidas suscitou uma bizarra onda de cinismo, difícil de descrever e, em todos os sentidos, de meu ponto de vista, absolutamente chocante. Na falta de definição mais apropriada, diria que se trata de uma espécie de relativização do terrorismo. Sua estrutura argumentativa é a seguinte: afirma-se posição contrária ao ato de terror e acrescentam-se algumas cláusulas condicionantes e qualificadoras: “mas, porém, contudo, apesar, todavia, no entanto, por outro lado”.
Eis alguns exemplos, colhidos em conversas, durante os dias que se seguiram ao colapso das torres: “É uma barbaridade, ninguém pode aprovar o terrorismo, MAS o fato é que os Estados Unidos espalharam o horror pelo mundo e, agora, estão pagando a conta”. “Realmente, um ataque assim violento contra pessoas inocentes é uma aberração, POR OUTRO LADO, os prédios atingidos eram emblemáticos do capitalismo e do imperialismo, portanto, apesar da crueldade do ataque, foi uma lição”. “A mídia está fazendo o maior estardalhaço com esse caso, NO ENTANTO, aqui, bem ao nosso lado, milhares e milhares morrem todo dia, vítimas da miséria produzida pelo capitalismo, sob o patrocínio do FMI, e ninguém vê, ninguém diz nada”.
A lógica empregada por esses meus amigos, defensores dos direitos humanos, é semelhante àquela usada pelos críticos dos direitos humanos, que causam tanta revolta em meus amigos e em mim, quando declaram, por exemplo, a propósito do rapaz morto por policiais quando era transportado para a Delegacia, depois do seqüestro do ônibus 174: “Está errado matar, ainda mais sem julgamento, MAS não nos esqueçamos de que o rapaz que vocês tratam como vítima do crime policial é o mesmo que, instantes antes, assassinou aquela pobre moça”. Ora, dizemos nós, os defensores dos direitos humanos, um crime não justifica outro e essa relativização, representada pelo MAS, no fundo, minimiza o crime policial, reduz sua gravidade, dissolve sua realidade moral e legal, e termina por justificá-lo, reproduzindo a lógica que impulsionou o próprio ato criminoso dos policiais. Nesse sentido, dizemos, aquele crítico dos direitos humanos, ao relativizar o crime policial, desculpa-o e se converte, assim, em seu cúmplice moral, estimulando a difusão dessa prática criminosa.
Aproveitando o mesmo modelo com que criticamos a relativização da violência, gostaria de dizer o seguinte aos meus amigos: o crime do rapaz, seqüestrando e matando uma inocente, não justifica, nem torna compreensível, perdoável ou menos bárbaro o crime dos policiais que o mataram por asfixia, enquanto fingiam conduzi-lo à Delegacia. Todos nós, humanistas, sabemos disso. Daí nossa indignação com os discursos dos que relevam a violência policial, tomando-a como vendetta justificável. Repudiamos com veemência esse método de troca, de intercâmbio de vidas e violências, cuja base é a suposição de uma intercambialidade, de uma comensurabilidade essencial, subjacente aos atos criminosos.
Do mesmo modo, o melhor de nossa tradição humanista exige de nós, agora, diante da tragédia americana, um posicionamento firme, incondicional, absolutamente claro, inteiramente liberto de ambigüidades: a violência terrorista é inaceitável e merece o mais veemente e incondicional repúdio. Nenhuma consideração complementar, nada reduz ou relativiza sua natureza criminosa e desumana. O terror é a face mais brutal da barbárie. Uma civilização, regida pela paz, não se edifica sobre a barbárie. Esta só gera ódio, escalada de violência, irracionalidade e totalitarismo.
Esse mesmo modelo argumentativo nos conduz a uma outra conclusão: nada justificaria o sacrifício de inocentes, nada justificaria retaliações americanas contra populações civis, exatamente pelas mesmas razões que nos levaram a concluir que as injustiças da globalização neoliberal não justificam o terrorismo.
Por isso, creio que os humanistas e pacifistas de todo o mundo, os defensores dos direitos humanos de todo o planeta, têm, hoje, diante de si, um desafio sem precedentes: ou seremos capazes de agregar apoios políticos e mobilizar as sociedades civis, em escala mundial, em favor de um pacto contra o terror e pela paz –pacto fundado no repúdio completo, radical e incondicional ao ataque do dia 11 de setembro-, ou o mundo se tornará pior do que é: será atravessado pela espiral das retaliações; países serão sacudidos por intervenções militares; o terror passará a usar armas químicas no interior dos Estados Unidos, contra alvos civis não-estratégicos e desprovidos de simbolismos especiais; a direita permanecerá no poder por uma década, nos EUA; a indústria armamentista e seus derivados passarão a ser o centro dinâmico do capitalismo internacional; os preconceitos raciais e religiosos alcançarão patamares inusitados; a perseguição dos imigrantes atingirá proporções inauditas e a cultura humanista, democrática e de inspiração socialista, sofrerá um revés talvez irreparável.
O primeiro passo, meus amigos, o passo que está ao nosso alcance, já, é o abandono do cinismo. O segundo poderia ser a elaboração de uma proposta, no Forum Social Mundial, que Porto Alegre abrigará, em janeiro de 2002, a ser submetida a todas as entidades, partidos e Estados, efetivamente comprometidos com os direitos humanos e a paz. Uma proposta que se se pudesse traduzir na celebração de um pacto político transnacional contra os imperialismos belicistas e o terrorismo de todos os matizes. Assim como a questão democrática foi um divisor de águas nas esquerdas mundiais, hoje, a problemática do terror divide o campo ideológico e identifica os protagonistas, lançando-os ao novo e mais terrível capítulo da guerra dos mundos, que deixou de ser fria com a explosão de Nova York. É tempo de tirar as máscaras e deixar claro de que lado estamos.