segunda-feira, 5 de setembro de 2011

O Brasil pode ser mais legal?


                                                                                        em homenagem ao mestre Zuenir Ventura

            Os organizadores do Café Literário, da Bienal do Livro, por intermédio do coordenador, Prof. Italo Moriconi, me convidaram para responder à seguinte pergunta: “O Brasil pode ser mais legal ?” Para minha alegria, fui brindado com o privilégio de contar com Zuenir Ventura como parceiro de mesa e com a mediação de Marília Martins.
            Pensei em discorrer sobre os desafios da legalidade, ou melhor, do respeito à legalidade, em uma sociedade profundamente desigual, em cujo cotidiano pesa o fardo de tantas violações aos direitos, inclusive por parte do Estado. O dilema se revela ainda mais difícil quando constatamos que entre as desigualdades, destaca-se a do acesso à Justiça, que começa com a abordagem policial e termina com a prolatação da sentença e o cumprimento da pena.
            Como esperar zelo unilateral por uma legalidade cuja afirmação tem sido reiteradamente desequilibrada, assimétrica, despudoradamente iníqua? Em outras palavras, como amar, praticar e defender uma justiça injusta, não na letra da lei, mas na substância de suas aplicações? E ainda, como prezá-la sem conhecê-la, sem compartilhar valores, sem compreender seus mecanismos, sua necessidade, a história política de sua construção?
            Desse modo, seguindo essa via argumentativa, eu teria oportunidade de trazer meu novo livro, Justiça, para o debate, uma vez que se dedica a abordar esses temas. Entretanto, se o fizesse deixaria de lado parte do campo semântico coberto pela pergunta. O adjetivo legal traz consigo outra acepção, distante do universo da Justiça. Significa também bacana, positivo, atraente, prazeiroso. A tendência natural de quem viveu a vida profissional quase toda na academia é desprezar este segundo recorte semântico e focalizar o primeiro, dotado de dignidade intelectual superior. Legal no outro sentido sequer é palavra nobre que mereça ingressar em discursos formalmente elaborados. É uma gíria, expressão vulgar, desprovida de profundidade, seriedade, compromisso com a lógica da ordem conceitual.
            Muito bem, se é assim, viremos do avesso expectativas, porque este é o primeiro movimento que deve fazer quem se disponha a pensar com liberdade, crítica e criativamente, desnaturalizando o senso comum estabelecido, ainda que esse consenso tenha se firmado em esferas distintas e poderosas, não importa se o poder em causa é simbólico, político ou econômico (até porque os pólos tendem a se sobrepor, circulando no mesmo campo magnético). Afinal, o consenso --aristocrático ou plebeu-- costuma ser o solo dos preconceitos.
            Tratando, então, das possibilidades de um Brasil mais legal, no sentido popular, eu diria que, sim, podemos ter esperanças e ser otimistas, desde que reconheçamos que falta muito para alcançar o patamar desejável. O que justifica o otimismo? Temos valores norteadores, alguns métodos e o tipo ideal regulatório para orientar nossa Bildung, ou seja, nossa Paideia laica, nossa construção social, cultural, psíquica, simbólica, ética e política –inclusive, legal na acepção jurídica.
            Temos tudo isso e a prova incontestável é a obra de Zuenir Ventura, da qual não devem ser excluídas a persona e a performance. Há obras para as quais as trajetórias e as posturas públicas dos autores são irrelevantes ou impertinentes, ainda que possa haver interesse em conectar essas dimensões para certo tipo de pesquisa. Entretanto, a posteridade reverencia Ezra Pound e Céline, apesar deles e de suas opções ético-políticas. Para apreciar as obras, nesses casos, é preciso afastá-las de seus autores e tratá-las em sua especificidade e autonomia. Talvez não seja o caso de Jack Kerouak, cujo destino gauche e tumultuado foi constitutivo da intervenção estético-cultural que produziu. Certamente, não foi o caso de Sartre, enquanto escritor e dramaturgo. Como separar o filósofo e o militante da obra, uma vez que foi regida pelo impulso de desdobrar a militância e de comprovar as teses filosóficas?
A obra de Zuenir compõe-se de livros, crônicas e intervenções públicas diversas, as quais também se realizam pelo exercício de funções estratégicas em importantes veículos de comunicação. Meu propósito não é ambicioso. Não pretendo nem tenho condições de analisar todo esse riquíssimo conjunto, em sua multiplicidade, tarefa que demandaria longa pesquisa e a mobilização de diferentes recursos interpretativos. Gostaria simplesmente de lançar algumas pistas, na expectativa de que sirvam de inspiração para projetos de estudo mais ousados.
Destaco apenas dois componentes do universo criativo e crítico-reflexivo de Zuenir: por um lado, o papel instaurador do livro Cidade Partida, nas mais diversas áreas culturais e políticas, e não só por seu admirável e inovador conteúdo, mas por sua forma e pelo método de sua construção; por outro lado, o efeito “paidêutico”, formador e etico-esteticamente matricial, da série de crônicas publicadas em O Globo.
No Globo de 4 de setembro, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, em sua coluna, distingue artigos e crônicas, articulistas e cronistas: “Espera-se de um articulista que argumente lógica e concatenadamente sobre um assunto qualquer, Já o cronista pode divagar”. A divagação, aqui, define-se como associação de ideias –ou relatos, imagens, valores, ou mesmo argumentos-- indiferente à lógica argumentativa, à concatenação. Não concordo. De meu ponto de vista, há modos distintos de manifestação da lógica argumentativa e há modalidades lógicas não argumentativas, nem por isso menos rigorosas, exigentes, sofisticadas e complexas. Além disso, questionaria a circunscrição de unidades, quando cada crônica se inscreve em uma sequência, sobretudo quando a sequência alcança profundidade histórica e a voz autoral se radica em um terreno político-cultural validado por um conjunto polissêmico de atores e intervenientes. A voz legitima e suporta a gratuidade (real ou aparente) do que é dito. O nome do autor que assina a crônica a inclui em um campo de valor denso. O estilo, a forma, a opção estética –não nos deixemos iludir pela simplicidade franciscana do coloquialismo—caracterizam um estilo, vá lá, mas também uma personalidade: a substância que os leitores atribuirão à persona, personagem público que se constitui, progressivamente (mas não de maneira linear) ao longo da série de intervenções (às quais se articulam outras modalidades de intervenção pública –posturas e opiniões, ou formas de enunciá-las).
Essa constelação, formada por persona, performance, ditos/escritos (crônicas), completa-se com a publicação dos livros.
Em uma primeira aproximação, o que seria possível extrair como a síntese desse complexo? Zuenir Ventura nos ensina por palavras, gestos, silêncios e obras, sobretudo pela forma com que todos esses elementos se manifestam e se harmonizam, que a construção de uma sociedade justa e democrática depende do exercício de uma certa cidadania. E que contribuir para sua afirmação e difusão depende do estabelecimento de modelos práticos, de referências e ancoragens identificatórias, de fontes de inspiração que sirvam também como bússolas de orientação. No entanto, orientação não significa imposição de antolhos ou camisas de força, que seriam o contrário da emancipação dos sujeitos, condição necessária para que se convertam em protagonistas da vida social. Zuenir nos propõe a cidadania marcada por um estilo, uma estética, um método e uma disciplina. Esses ingredientes, em sua vida-obra, correspondem à humildade com que o espírito crítico se manifesta e à acuidade com que a reflexividade crítica se cumpre. Humildade, neste contexto, significa auto-questionamento, reconhecimento da própria finitude, disposição corajosa de relativizar convicções, de resistir ao congelamento de conceitos em preconceitos, de resistir aos atrativos da resignação –aquela resignação que naturaliza o que se vive, que apazigua os ânimos e consagra, em dogmas, as crenças. Por isso, Zuenir passou a representar (em todos os sentidos do verbo) a humildade desassossegada da inteligência. Não qualquer uma, mas a inteligência que foi longe o suficiente para rever-se do ponto de vista da finitude, o que, por sua vez, recomenda um determinado horizonte ético para o agente social que deseja transformar-se em cidadão.
O próximo passo deveria ser a análise de algumas crônicas para demonstrar a hipótese, acima exposta.
O passo subsequente nessa investigação seria o exame do livro Cidade Partida e a aproximação entre seu conteúdo, sua forma e seu método, e a prática ético-estético-política do cronista, pela mediação da persona que o construiu.
Espero ter a oportunidade de prosseguir. Gostaria de contrastar esse complexo de opções de Zuenir com o contexto mais amplo da mídia nacional e dos discursos predominantes na internet brasileira, onde reina (evidentemente com exceções e contra-tendências) a afirmação de uma posição narcisicamente idealizada do sujeito que sabe, que adota crenças e valores inquesionáveis, cuja moralidade é indubitavelmente superior e cuja perspectiva interpretativa é antes acusatória do que analítica, de tal modo que os objetos de sua cólera moral e de seu desprezo intelectual degradam-se em dejetos imprestáveis.