sábado, 10 de setembro de 2011

11/9 Cinismo S.A. -Carta aberta aos meus amigos humanistas


(Artigo originalmente publicado no site www.no.com.br, em setembro de 2001. Posteriormente, incluído em meu livro, Legalidade Libertária –Lumen-Juris, 2006.)

            Cada um de nós tem suas razões para se emocionar com o crime bárbaro do dia 11 de setembro de 2001, que derrubou as duas torres do World Trade Center e talvez tenha encerrado um capítulo da vida humana no planeta.  Alguns choram a perda de amigos, outros sofrem ante mais uma demonstração de insanidade, outros se horrorizam ante os prováveis desdobramentos catastróficos, em todo o mundo, e se solidarizam com a dor das vítimas e de seus familiares. 
Eu me sinto pessoalmente envolvido, porque tenho uma dívida de gratidão pendente.  No momento mais difícil de minha vida, em março de 2000, quando a segurança de minha família estava em risco, no Rio de Janeiro, fui acolhido pela cidade de Nova York -generosa, cosmopolita, progressista, anti-racista, anti-homofóbica e anti-misógina, a despeito dos vários episódios que traem esse compromisso.  Esses casos, essas traições, justamente por agredirem a sensibilidade pluralista dominante, causam indignação na opinião pública novayorkina. 
Meu irmão, cientista da área bio-genética, viveu 18 anos na cidade.  Poucos lugares do mundo acolhem a diversidade, a ousadia, a criatividade, a crítica radical, e os imigrantes de todas as cores e todas as procedências, com mais tolerância, com um espírito mais democrático.  Certamente, Nova York é a capital do capitalismo, matriz de tantas perversidades e injustiças, porém, aqueles que se identificam com a tradição da esquerda humanista devemos recordar que a cidade é também um símbolo talvez incomparável do respeito à diferença.
            Escrevo, portanto, com o coração.  E foi também com o coração que senti o segundo impacto, dia 11.  O primeiro foi a tragédia.  O segundo, a reação de tantos interlocutores e amigos, todos humanistas e progressistas, à tragédia.  A ruína dos prédios e o sacrifício de milhares de vidas suscitou uma bizarra onda de cinismo, difícil de descrever e, em todos os sentidos, de meu ponto de vista, absolutamente chocante.  Na falta de definição mais apropriada, diria que se trata de uma espécie de relativização do terrorismo.  Sua estrutura argumentativa é a seguinte: afirma-se posição contrária ao ato de terror e acrescentam-se algumas cláusulas condicionantes e qualificadoras: “mas, porém, contudo, apesar, todavia, no entanto, por outro lado”. 
Eis alguns exemplos, colhidos em conversas, durante os dias que se seguiram ao colapso das torres: “É uma barbaridade, ninguém pode aprovar o terrorismo, MAS o fato é que os Estados Unidos espalharam o horror pelo mundo e, agora, estão pagando a conta”.  “Realmente, um ataque assim violento contra pessoas inocentes é uma aberração, POR OUTRO LADO, os prédios atingidos eram emblemáticos do capitalismo e do imperialismo, portanto, apesar da crueldade do ataque, foi uma lição”.  “A mídia está fazendo o maior estardalhaço com esse caso, NO ENTANTO, aqui, bem ao nosso lado, milhares e milhares morrem todo dia, vítimas da miséria produzida pelo capitalismo, sob o patrocínio do FMI, e ninguém vê, ninguém diz nada”.
A lógica empregada por esses meus amigos, defensores dos direitos humanos, é semelhante àquela usada pelos críticos dos direitos humanos, que causam tanta revolta em meus amigos e em mim, quando declaram, por exemplo, a propósito do rapaz morto por policiais quando era transportado para a Delegacia, depois do seqüestro do ônibus 174: “Está errado matar, ainda mais sem julgamento, MAS não nos esqueçamos de que o rapaz que vocês tratam como vítima do crime policial é o mesmo que, instantes antes, assassinou aquela pobre moça”.  Ora, dizemos nós, os defensores dos direitos humanos, um crime não justifica outro e essa relativização, representada pelo MAS, no fundo, minimiza o crime policial, reduz sua gravidade, dissolve sua realidade moral e legal, e termina por justificá-lo, reproduzindo a lógica que impulsionou o próprio ato criminoso dos policiais.  Nesse sentido, dizemos, aquele crítico dos direitos humanos, ao relativizar o crime policial, desculpa-o e se converte, assim, em seu cúmplice moral, estimulando a difusão dessa prática criminosa.
Aproveitando o mesmo modelo com que criticamos a relativização da violência, gostaria de dizer o seguinte aos meus amigos: o crime do rapaz, seqüestrando e matando uma inocente, não justifica, nem torna compreensível, perdoável ou menos bárbaro o crime dos policiais que o mataram por asfixia, enquanto fingiam conduzi-lo à Delegacia.  Todos nós, humanistas, sabemos disso.  Daí nossa indignação com os discursos dos que relevam a violência policial, tomando-a como vendetta justificável.  Repudiamos com veemência esse método de troca, de intercâmbio de vidas e violências, cuja base é a suposição de uma intercambialidade, de uma comensurabilidade essencial, subjacente aos atos criminosos. 
Do mesmo modo, o melhor de nossa tradição humanista exige de nós, agora, diante da tragédia americana, um posicionamento firme, incondicional, absolutamente claro, inteiramente liberto de ambigüidades: a violência terrorista é inaceitável e merece o mais veemente e incondicional repúdio.  Nenhuma consideração complementar, nada reduz ou relativiza sua natureza criminosa e desumana.  O terror é a face mais brutal da barbárie.  Uma civilização, regida pela paz, não se edifica sobre a barbárie.  Esta só gera ódio, escalada de violência, irracionalidade e totalitarismo.
Esse mesmo modelo argumentativo nos conduz a uma outra conclusão: nada justificaria o sacrifício de inocentes, nada justificaria retaliações americanas contra populações civis, exatamente pelas mesmas razões que nos levaram a concluir que as injustiças da globalização neoliberal não justificam o terrorismo. 
Por isso, creio que os humanistas e pacifistas de todo o mundo, os defensores dos direitos humanos de todo o planeta, têm, hoje, diante de si, um desafio sem precedentes: ou seremos capazes de agregar apoios políticos e mobilizar as sociedades civis, em escala mundial, em favor de um pacto contra o terror e pela paz –pacto fundado no repúdio completo, radical e incondicional ao ataque do dia 11 de setembro-, ou o mundo se tornará pior do que é: será atravessado pela espiral das retaliações; países serão sacudidos por intervenções militares; o terror passará a usar armas químicas no interior dos Estados Unidos, contra alvos civis não-estratégicos e desprovidos de simbolismos especiais; a direita permanecerá no poder por uma década, nos EUA; a indústria armamentista e seus derivados passarão a ser o centro dinâmico do capitalismo internacional; os preconceitos raciais e religiosos alcançarão patamares inusitados; a perseguição dos imigrantes atingirá proporções inauditas e a cultura humanista, democrática e de inspiração socialista, sofrerá um revés talvez irreparável. 
O primeiro passo, meus amigos, o passo que está ao nosso alcance, já, é o abandono do cinismo.  O segundo poderia ser a elaboração de uma proposta, no Forum Social Mundial, que Porto Alegre abrigará, em janeiro de 2002, a ser submetida a todas as entidades, partidos e Estados, efetivamente comprometidos com os direitos humanos e a paz.  Uma proposta que se se pudesse traduzir na celebração de um pacto político transnacional contra os imperialismos belicistas e o terrorismo de todos os matizes.  Assim como a questão democrática foi um divisor de águas nas esquerdas mundiais, hoje, a problemática do terror divide o campo ideológico e identifica os protagonistas, lançando-os ao novo e mais terrível capítulo da guerra dos mundos, que deixou de ser fria com a explosão de Nova York.  É tempo de tirar as máscaras e deixar claro de que lado estamos.


segunda-feira, 5 de setembro de 2011

O Brasil pode ser mais legal?


                                                                                        em homenagem ao mestre Zuenir Ventura

            Os organizadores do Café Literário, da Bienal do Livro, por intermédio do coordenador, Prof. Italo Moriconi, me convidaram para responder à seguinte pergunta: “O Brasil pode ser mais legal ?” Para minha alegria, fui brindado com o privilégio de contar com Zuenir Ventura como parceiro de mesa e com a mediação de Marília Martins.
            Pensei em discorrer sobre os desafios da legalidade, ou melhor, do respeito à legalidade, em uma sociedade profundamente desigual, em cujo cotidiano pesa o fardo de tantas violações aos direitos, inclusive por parte do Estado. O dilema se revela ainda mais difícil quando constatamos que entre as desigualdades, destaca-se a do acesso à Justiça, que começa com a abordagem policial e termina com a prolatação da sentença e o cumprimento da pena.
            Como esperar zelo unilateral por uma legalidade cuja afirmação tem sido reiteradamente desequilibrada, assimétrica, despudoradamente iníqua? Em outras palavras, como amar, praticar e defender uma justiça injusta, não na letra da lei, mas na substância de suas aplicações? E ainda, como prezá-la sem conhecê-la, sem compartilhar valores, sem compreender seus mecanismos, sua necessidade, a história política de sua construção?
            Desse modo, seguindo essa via argumentativa, eu teria oportunidade de trazer meu novo livro, Justiça, para o debate, uma vez que se dedica a abordar esses temas. Entretanto, se o fizesse deixaria de lado parte do campo semântico coberto pela pergunta. O adjetivo legal traz consigo outra acepção, distante do universo da Justiça. Significa também bacana, positivo, atraente, prazeiroso. A tendência natural de quem viveu a vida profissional quase toda na academia é desprezar este segundo recorte semântico e focalizar o primeiro, dotado de dignidade intelectual superior. Legal no outro sentido sequer é palavra nobre que mereça ingressar em discursos formalmente elaborados. É uma gíria, expressão vulgar, desprovida de profundidade, seriedade, compromisso com a lógica da ordem conceitual.
            Muito bem, se é assim, viremos do avesso expectativas, porque este é o primeiro movimento que deve fazer quem se disponha a pensar com liberdade, crítica e criativamente, desnaturalizando o senso comum estabelecido, ainda que esse consenso tenha se firmado em esferas distintas e poderosas, não importa se o poder em causa é simbólico, político ou econômico (até porque os pólos tendem a se sobrepor, circulando no mesmo campo magnético). Afinal, o consenso --aristocrático ou plebeu-- costuma ser o solo dos preconceitos.
            Tratando, então, das possibilidades de um Brasil mais legal, no sentido popular, eu diria que, sim, podemos ter esperanças e ser otimistas, desde que reconheçamos que falta muito para alcançar o patamar desejável. O que justifica o otimismo? Temos valores norteadores, alguns métodos e o tipo ideal regulatório para orientar nossa Bildung, ou seja, nossa Paideia laica, nossa construção social, cultural, psíquica, simbólica, ética e política –inclusive, legal na acepção jurídica.
            Temos tudo isso e a prova incontestável é a obra de Zuenir Ventura, da qual não devem ser excluídas a persona e a performance. Há obras para as quais as trajetórias e as posturas públicas dos autores são irrelevantes ou impertinentes, ainda que possa haver interesse em conectar essas dimensões para certo tipo de pesquisa. Entretanto, a posteridade reverencia Ezra Pound e Céline, apesar deles e de suas opções ético-políticas. Para apreciar as obras, nesses casos, é preciso afastá-las de seus autores e tratá-las em sua especificidade e autonomia. Talvez não seja o caso de Jack Kerouak, cujo destino gauche e tumultuado foi constitutivo da intervenção estético-cultural que produziu. Certamente, não foi o caso de Sartre, enquanto escritor e dramaturgo. Como separar o filósofo e o militante da obra, uma vez que foi regida pelo impulso de desdobrar a militância e de comprovar as teses filosóficas?
A obra de Zuenir compõe-se de livros, crônicas e intervenções públicas diversas, as quais também se realizam pelo exercício de funções estratégicas em importantes veículos de comunicação. Meu propósito não é ambicioso. Não pretendo nem tenho condições de analisar todo esse riquíssimo conjunto, em sua multiplicidade, tarefa que demandaria longa pesquisa e a mobilização de diferentes recursos interpretativos. Gostaria simplesmente de lançar algumas pistas, na expectativa de que sirvam de inspiração para projetos de estudo mais ousados.
Destaco apenas dois componentes do universo criativo e crítico-reflexivo de Zuenir: por um lado, o papel instaurador do livro Cidade Partida, nas mais diversas áreas culturais e políticas, e não só por seu admirável e inovador conteúdo, mas por sua forma e pelo método de sua construção; por outro lado, o efeito “paidêutico”, formador e etico-esteticamente matricial, da série de crônicas publicadas em O Globo.
No Globo de 4 de setembro, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, em sua coluna, distingue artigos e crônicas, articulistas e cronistas: “Espera-se de um articulista que argumente lógica e concatenadamente sobre um assunto qualquer, Já o cronista pode divagar”. A divagação, aqui, define-se como associação de ideias –ou relatos, imagens, valores, ou mesmo argumentos-- indiferente à lógica argumentativa, à concatenação. Não concordo. De meu ponto de vista, há modos distintos de manifestação da lógica argumentativa e há modalidades lógicas não argumentativas, nem por isso menos rigorosas, exigentes, sofisticadas e complexas. Além disso, questionaria a circunscrição de unidades, quando cada crônica se inscreve em uma sequência, sobretudo quando a sequência alcança profundidade histórica e a voz autoral se radica em um terreno político-cultural validado por um conjunto polissêmico de atores e intervenientes. A voz legitima e suporta a gratuidade (real ou aparente) do que é dito. O nome do autor que assina a crônica a inclui em um campo de valor denso. O estilo, a forma, a opção estética –não nos deixemos iludir pela simplicidade franciscana do coloquialismo—caracterizam um estilo, vá lá, mas também uma personalidade: a substância que os leitores atribuirão à persona, personagem público que se constitui, progressivamente (mas não de maneira linear) ao longo da série de intervenções (às quais se articulam outras modalidades de intervenção pública –posturas e opiniões, ou formas de enunciá-las).
Essa constelação, formada por persona, performance, ditos/escritos (crônicas), completa-se com a publicação dos livros.
Em uma primeira aproximação, o que seria possível extrair como a síntese desse complexo? Zuenir Ventura nos ensina por palavras, gestos, silêncios e obras, sobretudo pela forma com que todos esses elementos se manifestam e se harmonizam, que a construção de uma sociedade justa e democrática depende do exercício de uma certa cidadania. E que contribuir para sua afirmação e difusão depende do estabelecimento de modelos práticos, de referências e ancoragens identificatórias, de fontes de inspiração que sirvam também como bússolas de orientação. No entanto, orientação não significa imposição de antolhos ou camisas de força, que seriam o contrário da emancipação dos sujeitos, condição necessária para que se convertam em protagonistas da vida social. Zuenir nos propõe a cidadania marcada por um estilo, uma estética, um método e uma disciplina. Esses ingredientes, em sua vida-obra, correspondem à humildade com que o espírito crítico se manifesta e à acuidade com que a reflexividade crítica se cumpre. Humildade, neste contexto, significa auto-questionamento, reconhecimento da própria finitude, disposição corajosa de relativizar convicções, de resistir ao congelamento de conceitos em preconceitos, de resistir aos atrativos da resignação –aquela resignação que naturaliza o que se vive, que apazigua os ânimos e consagra, em dogmas, as crenças. Por isso, Zuenir passou a representar (em todos os sentidos do verbo) a humildade desassossegada da inteligência. Não qualquer uma, mas a inteligência que foi longe o suficiente para rever-se do ponto de vista da finitude, o que, por sua vez, recomenda um determinado horizonte ético para o agente social que deseja transformar-se em cidadão.
O próximo passo deveria ser a análise de algumas crônicas para demonstrar a hipótese, acima exposta.
O passo subsequente nessa investigação seria o exame do livro Cidade Partida e a aproximação entre seu conteúdo, sua forma e seu método, e a prática ético-estético-política do cronista, pela mediação da persona que o construiu.
Espero ter a oportunidade de prosseguir. Gostaria de contrastar esse complexo de opções de Zuenir com o contexto mais amplo da mídia nacional e dos discursos predominantes na internet brasileira, onde reina (evidentemente com exceções e contra-tendências) a afirmação de uma posição narcisicamente idealizada do sujeito que sabe, que adota crenças e valores inquesionáveis, cuja moralidade é indubitavelmente superior e cuja perspectiva interpretativa é antes acusatória do que analítica, de tal modo que os objetos de sua cólera moral e de seu desprezo intelectual degradam-se em dejetos imprestáveis.