terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Mensagem aberta a Pedro Abramovay

Pedro, de novo, estou a seu lado. Não desanime. O episódio de sua exoneração da Secretaria Nacional de Política sobre Drogas, do Ministério da Justiça, não o atingiu. Pelo contrário, o valorizou, demonstrando que, acima do cargo, você colocou o compromisso. Se deu a entrevista supondo o óbvio --isto é, que seus "companheiros" pensavam como você e, como você, estavam no poder para afirmar suas posições, não para ocultá-las e negligenciá-las--, você "caiu" porque a realidade é pior que o óbvio. Se a deu para forçar a passagem de suas ideias, arriscando o cargo, revelou coragem e desprendimento. Em qualquer caso, portanto, quem perde com sua saída é o governo ao qual você se dispusera a servir e o país, ao qual você serviu, propondo uma agenda e caminhos novos, e ao qual você continuará servindo. Mais um serviço você prestou, involuntariamente: revelar ao distinto público a natureza do governo --o modo de tratar seus membros e de posicionar-se ante a criminalização da pobreza e ante a hipocrisia da legislação sobre drogas.
Abraço fraterno,
le

Mensagem aberta a Pedro Abramovay

Pedro, de novo, estou a seu lado. Não desanime. O episódo não o atingiu. Pelo contrário, o valorizou, demonstrando que, acima do cargo, você colocou o compromisso. Se deu a entrevista supondo o óbvio --isto é, que seus "companheiros" pensavam como você e, como você, estavam no poder para afirmar suas posições, não para ocultá-las e negligenciá-las--, você "caiu" porque a realidade é pior que o óbvio. Se a deu para forçar a passagem de suas ideias, arriscando o cargo, revelou coragem e desprendimento. Em qualquer caso, portanto, quem perde com sua saída é o governo ao qual você se dispusera a servir e o país, ao qual você serviu, propondo uma agenda e caminhos novos, e ao qual você continuará servindo. Mais um serviço você prestou, involuntariamente: revelar ao distinto público a natureza do governo --o modo de tratar seus membros e de posicionar-se ante a criminalização da pobreza e ante a hipocrisia da legislação sobre drogas.
Abraço fraterno,
le

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

Entrevista a Leandro Saraiva-Revista Retrato do Brasil

Entrevista

HESITO, LOGO, COEXISTO

Luiz Eduardo Soares fala sobre literatura e ética, política e segurança pública. E revela como um episódio vivido numa favela carioca ajudou a definir sua trajetória

por Leandro Saraiva

A carreira de Luiz Eduardo Soares talvez seja tão excepcional quanto a de Tropa de Elite 2, filme para o qual, aliás, o antropólogo, escritor e especialista em segurança pública contribuiu de forma direta e importante, por meio de um diálogo muito próximo com o diretor e produtor José Padilha estabelecido desde a entrevista concedida ao cineasta para o documentário Ônibus 174 (2002).
A atividade pública de Soares não respeita as tradicionais fronteiras entre academia, política pública, militância, presença na mídia e expressão artística, reinventando o lugar contemporâneo do intelectual e permitindo contribuições fundamentais, como, por exemplo, o eficiente ataque à cobertura midiática maniqueísta e ufanista da recente crise de segurança pública carioca que, em nome da “vitória contra o tráfico”, varreu para baixo do tapete a transformação mafiosa em curso na polícia do Rio com a expansão das milícias.
O choque de lucidez propiciado por suas entrevistas potencializa e recria sua intervenção em outros campos, como na parceria com Padilha, e em seus best-sellers, que  traduzem uma múltipla e profunda experiência de convívio e combate à barbárie criminosa em narrativas ao mesmo tempo envolventes e esclarecedoras.
Cientista social renomado, com importantes ensaios na área da filosofia política com destaque para a questão da crise do sujeito universal iluminista e das novas formas da esfera política contemporânea, Soares, no início dos anos 1990, coordenou uma equipe de pesquisa do Instituto de Estudos da Religião (Iser) sobre violência e criminalidade no Rio de Janeiro. Esforço amplo, interdisciplinar e em diálogo cerrado com o movimento Viva Rio, que concilia ações de grande impacto midiático com propostas de políticas públicas que visam à garantia dos direitos civis.
Foi no contexto desse esforço, que associava pesquisa e militância – sobre o qual escreveu textos marcantes relativos aos novos movimentos sociais (veja-se os ensaios “O herói serial” e “O mágico de oz” em Violência e criminalidade no Rio de Janeiro, Relume-Dumará/Iser, 1996) –, que Soares e a equipe por ele coordenada formularam um programa que o levaria ao posto de subsecretário de Segurança e de coordenador de Segurança, Justiça e Cidadania do estado do Rio de Janeiro (cargo que ocupou entre janeiro de 1999 e março de 2000).
Ali, tentou combater o que batizou de “banda podre” da polícia carioca (que de lá para cá cresceu e se tornou a rede de milícias mafiosas que infesta a cidade) e implementar um amplo programa de reformas que incluía transformações radicais, como a Delegacia Legal e os Mutirões pela Paz (que prenunciavam as atuais Unidades de Polícia Pacificadora, UPPs, com a diferença de estarem organicamente ligados a uma reforma sistêmica).
Derrotado pelos poderes atávicos que combatia e ameaçado de morte, teve que se afastar do País com a família. Essa experiência, muito dura, mas também tremendamente esclarecedora dos bastidores da política, está narrada em Meu casaco de general – 500 dias no front da segurança pública do Rio de Janeiro (Cia das Letras, 2000), livro que se lê como testemunho político, como descrição etnográfica desse campo, como debate em torno de um programa radical e sistêmico para a área da segurança pública, mas, talvez, antes de tudo isso, como um thriller empolgante.
Meu casaco de general abriu caminho para uma série de livros do autor – que não abandonou o trabalho como professor, nem como eventual gestor público da área de segurança (foi secretário nacional no início do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e secretário municipal do município fluminense de Nova Iguaçu) –, tendo sido experimentadas parcerias de criação com pessoas envolvidas nos contextos em questão e formas narrativas. Objetos literários não identificados, esses livros certamente são romances mas trazem misturados em sua massa ficcional elementos de descrição de corte antropológico, reflexões ensaísticas, cenas dramáticas que oscilam entre o teatro e o roteiro de cinema, mergulhos líricos em monólogos ou em momentos de discurso indireto embebidos da subjetividade alheia.
Tudo isso “baseado em fatos reais”, poderíamos dizer, repetindo a fórmula da indústria do entretenimento. Mas há também uma variação da posição do narrador que produz nos leitores um deslocamento de posições sociais  e suspensão dos automatismos e estereótipos, gerando uma abertura e indeterminação dos julgamentos morais. Ver a barbárie com olhos e coração surpresos talvez seja a única chance de invenção civilizatória.

Retrato do BrasilDentro do conjunto de seus livros, o último, Elite da Tropa 2 [Nova Fronteira, 2010], integra um grupo especial, o de obras dedicadas à narração de histórias contemporâneas de violência e crime. Como foram desenhados o projeto e a realização desses livros?
Luiz Eduardo Soares – O projeto nasceu em 2002. Apresentei à editora Objetiva a ideia de uma tetralogia: (i) entrando no tráfico, (ii) saindo do tráfico, (iii) a polícia e (iv) a prisão, que acabou por se tornar uma trilogia. As duas primeiras ideias se tornaram o Cabeça de porco [Objetiva, 2005]; a polícia foi abordada em Elite da tropa 1 [Objetiva, 2006], e a prisão nunca foi tratada. No lugar dela, digamos, surgiu Espírito Santo [Objetiva, 2009], tratando de um caso ocorrido naquele estado – o assassinato do juiz Alexandre Martins – e mostrando que o Judiciário também é plataforma de corrupção e crime organizado. O Elite da tropa 2 não estava no projeto de 2002, e durante certo tempo resisti à ideia por não querer produzir mais do mesmo. Mas ele veio como resposta à emergência das milícias, servindo de mote à vontade de um mergulho mais intenso na subjetividade e na moralidade dos policiais.
Cabeça de porco, que deu origem à série, foi imaginado numa conversa com [o produtor cultural] Celso Athayde e, logo incluímos o[o rapper MV] Bill. Seria um mergulho no universo de jovens envolvidos com violência, particularmente com o tráfico armado, nas periferias de cinco regiões brasileiras. A intenção era, antes de julgá-los, ouvi-los, compreendê-los, distinguindo itinerários, múltiplas formas de constituição destes sujeitos “violentos” – na contramão de categorias generalizantes, que servem para diluir singularidades e produzir estigmas. Esse mergulho em busca do outro eu não poderia fazer sem Bill e Celso.
O mergulho já estava, aliás, em curso nos registros que faziam para o documentário Falcão [2006]. Eu trazia um olhar externo que se contrapunha ao deles e o complementava. Nós assinamos os capítulos, formando um mosaico. No livro, não sou o cientista social que interpreta o que eles escrevem. A minha voz soma-se ao coro, com desarmonias e convergências.
O segundo livro seria dedicado, por assim dizer, aos “inimigos”. Era preciso, mais uma vez, mergulhar no universo, agora policial, buscando uma perspectiva surpreendente, que suspendesse os estigmas. De novo, eu precisava de parceiros vindos daquele mundo, que falassem de dentro e pudessem ouvir seus colegas como tais, como parceiros. Eu era amigo de Rodrigo Pimentel, ex-capitão do Bope [Batalhão de Operações Policiais Especiais da Polícia Militar do Rio de Janeiro], há bastante tempo, e ele sugeriu que trouxéssemos André Batista para o projeto.
A história de vida de André é uma matriz narrativa extraordinária, vale como uma radiografia do Rio de Janeiro. Sua experiência entre o que ele vê e vive como a guerra dos combates noturnos nas favelas do Rio e o cotidiano de estudante bolsista de direito da PUC, com seus colegas da elite carioca que debatem os temas sociais e jurídicos fumando um baseado expõe a fratura da sociedade carioca, e talvez da nacional. De um lado estão aqueles que é preciso matar, do outro os que são modelos a admirar? Essa fratura, que tem uma face de cumplicidade e outra de incomunicabilidade, espécie de apartheid psicológico, cultural e prático, esse abismo que separa duas dimensões, é sintetizada no percurso cotidiano do personagem narrador de “Diário da guerra” [primeira parte de Elite da tropa 1, inspirada em André, que, durante o amanhecer, volta da guerra para seu batalhão, lava o sangue e suas cicatrizes, veste roupas civis e, num prosaico ônibus em direção à Gávea, se dirige à PUC]. A relação criativa entre nós três foi, acredito, inovadora.
Enquanto Cabeça foi composto como mosaico de textos assinados, Elite é escrito apenas por mim. Mas considero os parceiros como coautores, porque eles não são apenas fontes que eu possa citar. Durante um ano, nós nos encontrávamos e passávamos juntos os sábados. Eu os ouvia sem gravar ou anotar nada para que os casos, a voz e o tom começassem a se destacar. Eles foram fundamentais, mas quem escreveu fui eu. Até porque eu gostaria que fosse um trabalho literário, de construção de vozes narrativas. Na segunda parte do livro [“Dois anos depois: a cidade beija a lona”], há um movimento do palco das favelas e dos combates para os bastidores políticos.

RB – Essa segunda parte do Elite da Tropa 1 prenuncia a perspectiva da politização da experiência imediata do guerreiro do Bope, seja ela a dos coautores, Pimentel e Batista, transfigurada no narrador da primeira parte do livro, seja a do capitão Nascimento, do filme Tropa de Elite. É nessa virada da parte 1 para parte 2 – que, no cinema, foi feita do primeiro para o segundo filme – que se manifesta mais explicitamente a sua vivência direta como subsecretário. Você narrou essa experiência em primeira pessoa e em forma de relato não ficcional em Meu casaco de general. A segunda parte de Elite da tropa 1 pode ser vista como a versão ficcionalizada e organizada em terceira pessoa, de modo mas onisciente, do que você viveu?
LES – Digamos que o léxico é realista, traduz ou alude ao que foi, entre aspas, “realmente vivido”. E a sintaxe desses trabalhos é ficcional, submetida a estratégias narrativas. Eu combino personagens e acontecimentos, traços de pessoas reais, eventos, deslocando cenários e reunindo tudo numa única trama, buscando compor algo que fosse mais revelador.

RB – A lógica de funcionamento...
LES – ...que se revela também por meio de conflitos ficcionalmente compostos, exacerbados para suscitar emoções mais fortes e, ao mesmo tempo, evidenciar as lógicas em curso. Dificilmente no Elite da tropa 1 o fato narrado não aconteceu, não foi por mim testemunhado, quando estive na Secretaria de Segurança, ou não foi a mim relatado. Houve um grande trabalho de edição, com os episódios recombinados de um modo que subverte a história real, mas dela se reapropria. Aliás, acho que há um pecado na segunda parte: o próprio Domingos de Oliveira [com quem Soares escreveu a peça teatral Confronto, baseada na segunda parte de Tropa de Elite 1] dizia que gostava do livro, mas apontava uma abundância de personagens que dificultava o acompanhamento.

RB – O livro traz, no final, uma exposição didática das tramas por parte dos personagens da inteligência policial...
LES – É verdade, mas aí já é política de redução de danos.

RB – Na peça escrita com Domingos já há uma redução, e o roteiro do Tropa de Elite 2 tem uma redução muito maior daquela abundância de tramas e personagens políticos. Ganha-se em impacto e capacidade de comunicação de questões centrais, mas se perde alguma coisa quanto ao grau de imponderabilidade do cipoal de alianças e corrupções.
LES – Você fez a leitura mais benigna, mas mais interessante. De fato, é como se fosse um processo metastático do filme Bebê de Rosemary, de Polanski. A cada momento, uma nova trama nasce, escapa ao seu controle. Infinitas ramificações e o sentir-se perdido entre os personagens são partes do problema. Por essa estratégia de composição narrativa, o leitor consegue vivenciar o que significa perder-se e sentir-se cercado por redes que você não controla e sequer consegue descrever.

RB – Essa complexidade da trama política em torno do crime organizado está presente também em Espírito Santo e em Elite da Tropa 2...
LES – Mais uma vez, nos dois casos, a vivência e a convivência com os parceiros foram fundamentais. Carlos Eduardo Ribeiro Lemos é juiz no Espírito Santo e era o principal parceiro de trabalho e amigo de Alexandre Martins Castro Filho, jovem juiz assassinado pelo crime organizado em retaliação à perseguição comandada por eles. E Rodney [Rocha Miranda] se juntara a eles como secretário de Segurança do Espírito Santo, nomeado em meio à crise provocada pela ação da dupla de juízes, para conduzir a investigação do assassinato. Construir o perfil de Alexandre, personagem sob vários aspectos extraordinário, passava pela costura da trama mafiosa que, no Espírito Santo, praticamente prenuncia o que pode vir a se firmar no Rio e em outros estados com o alastramento do câncer das milícias. Para tecer essas linhas, meus parceiros foram cruciais, mas, por outro lado, já que quem escreveu cada uma delas fui eu, o livro é autoral.
Da mesma maneira procedi em Elite da Tropa 2. Fui eu que escrevi, mas os outros foram importantíssimos, particularmente o Cláudio Ferraz, titular da Draco [Delegacia de Repressão ao Crime Organizado], responsável por 400 das 500 prisões de milicianos no estado nos últimos 4 anos. Eu já escrevi sobre as milícias como pesquisador; outros colegas já se debruçam sobre o tema há algum tempo; Marcelo Freixo [deputado estadual pelo PSOL] as combatia na política; algumas lideranças comunitárias tinham a coragem de denunciá-las etc. O tema foi se impondo. Até porque as milícias são filhas bastardas de tudo que eu combatera no processo relatado em Meu casaco de general: no Rio de Janeiro, apesar dos milhares de policiais honestos, o crime é a polícia, e a polícia é o crime, com protagonismo e empreendedorismo criminal.
Tínhamos dados de pesquisas, denúncias, artigos, mas isso era insuficiente para o mergulho, que, para não repetir o livro anterior como uma fórmula, teria que ir mais fundo na subjetividade e nos dilemas morais dos policiais. Aí o Cláudio Ferraz me telefonou. Ele queria escrever um livro sobre sua experiência assombrosa na Draco, e foi o que fizemos. Cláudio trouxe todas as investigações, eu fui com ele às delegacias, entrevistei os inspetores, os colegas de trabalho. Marcelo me deu os DVDs com as audiências públicas que ele presidiu, me concedeu longas entrevistas. Novamente, Pimentel e Batista trouxeram suas experiências e nasceu Elite da tropa 2. Eu acho que há muito coerência nessa trajetória.

RBMeu casaco de general parece estar na origem desse ciclo narrativo de seu trabalho. Poder-se-ia dizer que a composição da narrativa do livro, misto de antropologia política, romance, denúncia militante e catarse pessoal, foi a descoberta de um caminho de experimentação expressiva?
LESMeu casaco de general é inteiramente distinto, porque pretende ser fiel à experiência vivida, até o ponto em que isso seja possível. A intenção de um relato realista vinha de antes. Havia a intenção de relatar o jogo político que vem definindo a política de segurança desde antes da eleição de Anthony Garotinho [governador do Rio de Janeiro entre 1999 e 2002].
Meu sonho era fazer uma etnografia do poder na área de segurança pública. Atravessar esse muro que separa os bastidores do proscênio e descrever os processos de tomada de decisão, as disputas micropolíticas, as vaidades, os problemas emocionais e pessoais. Eu contribuíra para a eleição de Garotinho com um livro sobre segurança pública escrito pela equipe que eu coordenava e encampado por ele como peça de programa e campanha. Como retorno, pedi a ele que me facultasse o acesso aos bastidores políticos. O que ele, afinal, fez, na forma de um convite para que eu integrasse a Secretaria de Segurança Pública. Apesar do custo desse pacto fáustico, talvez fosse mesmo o preço necessário para ter acesso: envolver-se.
Mas para além do projeto intelectual, houve um evento, relatado em Meu casaco de general, logo em sua abertura, que foi para mim definitivo para desencadear esses livros sobre os quais estamos conversando. Foi no início da implantação do Mutirão pela Paz, que pretendia acabar com as incursões, oferecendo às favelas um serviço de segurança 24 horas, com policiais respeitosos da legalidade e dos direitos humanos, enfim, um policiamento como o do Leblon. Isso serviria como uma plataforma, de base, a partir da qual os serviços sociais, os deveres, as responsabilidades sociais do Estado - educação, saúde, urbanização etc. - poderiam ser cumpridos. Enfim, basicamente o mesmo projeto das UPPs atuais.
Fomos em comitiva oficial, na qual estava também a vice-governadora, Benedita da Silva, ao Jacarezinho, com a presença massiva da mídia. A minha intenção era apresentar a ideia, mas sobretudo ouvir, redefinir a relação com a comunidade. Depois de muita hesitação, a primeira mulher tomou a palavra. Primeiro, disse que era muito estranho que nós estivéssemos ali. Na falta de eleições, nossa presença era estranhíssima, mas algo promissor. Por isso, ela se dispunha a falar. Ela, então, relatou o assassinato de seu sobrinho na porta de sua casa, cometido pela polícia de modo bárbaro. Ela se emocionou. E era tão intenso o relato, tão forte o testemunho, que os representantes da mídia ali presentes desligaram seus equipamentos espontaneamente, por pudor e respeito. Nós todos nos comovemos e ficamos em silêncio. Depois desse depoimento, outro se seguiu e depois outro... e era como se um coro replicasse, no fundo, o mesmo relato. Ainda que todos nós soubéssemos daquela verdade, nos demos conta de que não sabíamos. Mais de mil pessoas são mortas por ações policiais todo ano no estado do Rio de Janeiro. Esse é um numero bárbaro, inaceitável, configura uma espécie de genocídio de jovens pobres e negros. Sim, eu sei, eu escrevo sobre isso, eu reitero, eu denuncio. Essa informação circula, não é nova. Mas de que maneira essa informação é metabolizada? Que lugar ela ocupa na economia emocional e psicológica de cada um? Eu acho que circula e sai pela urina, se mistura com muitas outras informações, como o clima, as contas a pagar, o exame clínico a fazer etc. Isso não ocupa o lugar do incomensurável, do indizível, isso não traumatiza, não se instala como o Real, no sentido lacaniano, que insiste em aparecer e nos assombrar. Nesse sentido, essa verdade não é conhecida. Na última intervenção daquele dia, um jovem, o único homem entre várias mulheres que choravam seus mortos, relatou, muito emocionado, o desespero e impotência sentidos poucas semanas antes depois de ele ver mais uma pilha de cadáveres de conhecidos seus, em mais uma madrugada, momento em ele se sentou, sozinho, na sala da associação de moradores e, vendo o dia se anunciar, pensou: a sociedade vai amanhecer para mais um dia e a sua rotina vai se seguir, sem a menor percepção – no sentido mais profundo a que eu me referi – do que aconteceu aqui nesta noite.
Naquele instante, eu recebi uma mensagem sobre a minha missão. Existem momentos nos quais você dialoga consigo mesmo e traduz algum evento como uma mensagem para você mesmo, um marco a partir do qual você reorganiza sua ordem interna, seu entendimento sobre suas possíveis funções no mundo, o sentido de sua passagem pela vida. Este foi um momento assim para mim. Eu entendi que cabia a mim me esforçar para contar essa história numa dimensão não simplesmente cognitiva, mas de um modo que contivesse em si o antídoto do reducionismo intelectualista. Talvez só uma narrativa de natureza estética fosse capaz de criar o laço, de promover o encontro, de criar essa relação imaginaria empática, capaz de fazer outros sentirem o que senti naquele dia, no Jacarezinho. Esse momento, muito marcante, que abre Meu casaco de general está na origem deste projeto.

RB – No texto de introdução do livro Violência e criminalidade no Rio de Janeiro, citando o filósofo pragmatista americano Richard Rorty você já falava da meta de “ver pessoas estranhas como companheiras de sofrimento” como algo a ser atingido mais pela imaginação do que pela cognição. E fazia uma aposta, moral e política, na literatura e na etnografia, como modelos de imaginação do mundo do outro. Até onde vai a conexão entre essas reflexões e a experiência quase epifânica no Jacarezinho?

LES – Esse fio da meada que costuma passar despercebido entre faces complementares do que tenho tentado realizar é muito importante para mim. Venho experimentando a narrativa literária desde o Experimento de Avelar, romance publicado em 1997, e A toast to fear, um texto híbrido, publicado somente em inglês, composto de fragmentos etnográficos e de flashes memorialísticos que buscam dar conta da experiência de um jovem na ditadura brasileira. Quanto a esses experimentos, falo de arte, ou estética, como a construção de campos imaginários de ressonância que estimulem experiências de trânsito, de transe até, um êxtase que suspende a consciência imediata e permite o deslocamento imaginário para a posição do outro. O estágio moral é atingido quando o sujeito é capaz de se colocar na posição do outro em sua autonomia e diferença, como diz Kant, sem instrumentalizá-lo. É assim que tenho tentado cumprir a missão que entendi ter recebido daquelas pessoas que me contaram suas histórias naquela dia no Jacarezinho.

RB – Pôr-se no lugar do outro como ideia reguladora do esforço político e do esforço intelectual... Reúnem-se aí pontas do novelo de seu trabalho, da escrita como experimentação ao mesmo tempo etnográfica, ensaística e literário-narrativa e também da política como experimentação, no sentido que você explicita nos artigos de Violência e criminalidade, de movimentos da sociedade civil que lançam apostas e articulam arcos de aliança e programas de ação na medida de suas capacidades de mobilização naquele momento. Essa sobreposição de experimentações seria, portanto, algo específico de seu trabalho que, de certa forma, reinventa o lugar do intelectual engajado.


LES – Creio que, para mim, é fundamental a ideia da impossibilidade de a regra dar conta do real. Há um vazio instilado na própria definição do agente, esse vazio da indeterminação e da incerteza, o potencial aberto de interferência. É o vazio do novo, da criação, que é também fonte de angústia e de medo, porque aponta para a imprevisibilidade, para a finitude, para a morte, para a alteridade, que é o desconhecido, o não controlado. O máximo que você pode fazer é dialogar com princípios e valores do repertório que a sua cultura oferece, mas agindo diante do dilema, compreendendo-o como um desafio de natureza também estética, além de cognitiva. Estética porque você vai ter que definir o objeto e as condições de sua apreensão. Elas não estão dadas, assim como se faz no exercício da linguagem criativa. Então, a hesitação é positiva. Tempos atrás, escrevi um ensaio no qual faço um elogio moral à ambiguidade, à hesitação. Não àquela hesitação da dúvida metódica. Elogio à hesitação, ponto, sem síntese, que não se resolve.

RB – Hamlet, e não Descartes...
LES – Exato. A vida segue e, no caso da ética, o indecidível é trágico porque tem que ser decidido de modo injustificável, permanecendo como contradição, e a decisão sempre implica transgressão de valores, perdas. O que podemos fazer é nos esforçarmos para reduzir danos e lidar com isso sem uma falsa ansiedade – que provém da pressuposição de que podemos resolver os impasses. Essa visão, que devo a Kolakovski e a Isaiah Berlin, recusa a unidade platônica do Bom, do Belo e do Verdadeiro. Vivemos no infundado, e talvez seja a hesitação que constitua de fato o que há de ético no juízo ético. É a noite insone de quem se dobra em torno do dilema que constitui a dimensão ética, humana. A decisão, depois, é uma intervenção na prática, porque ela exige do sujeito, inevitavelmente falho e limitado, e o interpela. Reconhecer essa precariedade em si e nos outros é criar um campo moral dialógico.

RB – Na parte final de Elite da Tropa 2, há um longo diálogo no qual o deputado inspirado em Marcelo Freixo expressa seu dilema moral frente à ação violenta do policial narrador da primeira parte de Elite da Tropa 1, e mesmo em relação ao orgulho que ele sente de suas ações. No filme, há algo dessa hesitação no depoimento final de Nascimento à CPI, quando ele diz que a polícia do Rio precisa acabar: “eu não sei responder ao meu filho sobre por que mato. Perdi a possibilidade de justificar os meus atos”. São formas dramáticas de expressar essa visão filosófica da moral como abertura para a angústia da incerteza?


LES – De fato, tem tudo a ver. Acredito que abrir esse espaço de incerteza seja fundamental para encontrarmos novos caminhos como sociedade.

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Carta aberta ao Ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo

P.S. em 13 de janeiro: Ontem, publiquei a carta abaixo, cumprimentando o ministro pela posição manifestada por seu secretário, Pedro Abramovay. Hoje, noticia-se que o ministro desautorizou o secretário e defendeu posição oposta. Resultado: estou perplexo; o secretário, enfraquecido; o ministro, ideologicamente alinhado com os adversários históricos do PT. Mas nem tudo está perdido: O Globo, hoje, apoiando a proposta do secretário em belo editorial, mostra que o espectro político não pode mais ser interpretado com velhas classificações e que talvez o ministro tenha exagerado na dose e sido mais realista do que o rei ao sepultar avanços com os quais tantos de nós sonhávamos. Quem sabe ele se dará conta de que o erro não foi do Pedro. Afinal, o governo está só começando. Ainda haverá tempo para mudanças. Moral da história: quem não gosta de planos para campanhas presidenciais deveria atentar para as consequências desastrosas de eleições sem planos. Os governos começam batendo cabeça, perdidos, e mesmo equipes pequenas, qualificadas, intelectualmente densas, sangram com fraturas expostas. Eis aí mais uma razão a justificar o temor que justifico na carta-aberta, abaixo: Ministro, não negocie com governadores questões relativas à segurança sem um plano sistêmico. Há o risco de voltarmos ao varejão voluntarista, perdendo mais uma oportunidade histórica de avanço consistente e sustentável.
               Mesmo defasada pela polêmica entre o ministro e o secretário, mantenho postada a carta aberta, porque ela contempla tópicos que permanecem pertinentes.
                                                                                  ***
Rio de Janeiro, 12 de janeiro de 2011.

Prezado Ministro José Eduardo Cardozo,
                             em primeiro lugar, parabéns pela nomeação de sua equipe. Regina Mikki (nova secretária nacional de segurança pública) e Pedro Abramovay (novo titular da secretaria de políticas sobre drogas) são excelentes profissionais, com trajetórias respeitáveis. Mais que isso, admiráveis. Regina tornou-se nome nacional e referência internacional quando, ao lado do prefeito José de Filipi, revolucionou Diadema. A tal ponto que o município mais violento do país tornou-se exemplo de segurança pública. Definida a redução de homicídios como prioridade absoluta, a receita foi inteligente e eficaz: investimento de energia infatigável na promoção de medidas preventivas por meio da integração de políticas inter-setoriais. Regina e Filipi apostaram também na cooperação entre a Guarda civil municipal e as polícias estaduais, em muita informação qualificada, bom planejamento e avaliações constantes para identificar erros e corrigi-los. A dedicação permanente do prefeito foi decisiva, infundindo autoridade política nas ações da secretária. Regina tem o privilégio de herdar o legado de conquistas de um excelente antecessor, Ricardo Balestreri.
Pedro tomou posse com o pé direito, criticando o encarceramento perverso dos pequenos traficantes e se recusando a endossar o triste processo brasileiro de criminalização da pobreza. Enjaular jovens que nunca perpetraram atos violentos nem se armaram é um modo caro de torná-los piores, fechando-lhes portas e horizontes, esmagando sua auto-estima e oferecendo-os de bandeja para redes criminosas.
Outro ótimo sinal já na partida, ministro, foi a transferência da antiga SENAD –hoje, secretaria nacional de políticas sobre drogas—do gabinete de segurança institucional, sob comando militar, para seu ministério. Sabemos que a localização ideal seria o Ministério da Saúde, mas um dia chegaremos lá. Nesse momento, foi o movimento politicamente viável, que deve ser saudado como um avanço.
Estimulado por tantas boas notícias e com esperança de que elas não sejam frustradas mais adiante, tomo a liberdade de me dirigir a V.Exa nesta carta aberta. Os jornais divulgaram sua intenção de visitar governadores para lhes propor um pacto nacional, de Estado, não de governo, em torno da segurança pública. Que ótimo, ministro. Tenho me dedicado a essa causa há mais tempo do que gostaria de admitir. Escrevi alguns livros a respeito, sustentando essa mesma visão, digamos, ecumênica, não partidária, não voluntarista, não condicionada pelo ciclo eleitoral e por slogans retóricos. Cheguei a cunhar um título para o novo contrato social e político: “pacto pela paz”. Não é possível que tenhamos, como nação, evoluído tanto --estabilizando a moeda, racionalizando a gestão pública, fortalecendo as instituições democráticas e reduzindo as desigualdades--, e que continuemos tão primitivos e irracionais, voluntaristas e reativos, dispersivos e superficiais, tão estupidamente dominados por cálculos mesquinhos, corporativos e eleitoreiros, tão demagógicos e populistas no enfrentamento dos dilemas da segurança pública. O Brasil atingiu a maturidade em vários campos, por que a segurança tem de permanecer tão atrasada?
Ministro, o Pronasci é um programa muito positivo, que deve ser preservado e ampliado, sobretudo se puder vir associado a um aperfeiçoamento na coordenação integradora, valorizando-se crescentemente o poder local, os gestores municipais. No entanto, ministro, não creia que o Pronasci resolverá nossos problemas, nem mesmo do ponto de vista de uma expectativa modesta. A sabedoria do Pronasci não será suficiente para mudar as instituições da segurança pública. E sem mudá-las, não sairemos da enrascada em que nos metemos. O Pronasci é um belo complemento de uma política de reformas estruturais, seja da arquitetura institucional do campo da segurança, seja do modelo policial. Sozinho, não se manterá de pé.
Os GGIs municipais e estaduais (Gabinetes de Gestão Integrada da Segurança Pública), ministro, são a melhor ideia para reduzir os danos produzidos pelas estruturas organizacionais vigentes, mas só funcionam excepcionalmente, porque dependem de boa vontade, uma vez que têm, por natureza, baixíssimo grau de institucionalidade. Institucionalizá-los seria inconstitucional, justamente porque eles são dispositivos voltados para inverter a fragmentação conflitiva decorrente do desenho constitucional, expresso no artigo 144. O mesmo vale para o SUSP, ministro. O sistema único de segurança pública deveria ser um conjunto de normas infra-constitucionais que regulariam aspectos decisivos das polícias. Por isso, não faz sentido sequer pensá-lo fora do contexto das reformas institucionais, apenas em cujo âmbito o controle de qualidade (tal como desenhado no SUSP) faria sentido.
Portanto, ministro, peça à sua equipe que não fale do GGI e do SUSP se uma política estruturante e efetivamente reformista não está em suas cogitações. Seria triste ver siglas que um dia representaram a esperança de transformações convertidas em fetiches ou peças de retórica.
Ministro, a consulta e, melhor ainda, a negociação com os governadores é condição sine qua non de sucesso em qualquer processo de mudanças nessa área. Torço por seu êxito. Mas acredito ser meu dever compartilhar com o senhor algumas reflexões. Falo de experiência vivida. Não fui ministro, mas como secretário nacional de segurança segui a mesma rota que o senhor se dispõe a percorrer. Visitei todos os governadores. Consultei-os e negociei com eles o apoio ao que, à época, era nosso plano nacional de segurança. O presidente Lula foi eleito para o primeiro mandato defendendo-o. Coube-me o privilégio de começar a implementá-lo. Iniciei como o senhor, na via real do poder. Não quero desanimá-lo, ministro. Pelo contrário, quero que minha derrota o ajude a driblar obstáculos, porque o Brasil precisa de seu triunfo. Pois saiba que minha derrota não foi provocada pelos governadores. Mesmo os mais arredios terminaram por concordar com nossa proposta. Ela envolvia providências práticas, nos estados --relativas às polícias civis e militares--, que seriam adotadas pelos governadores, em observância estrita ao princípio federativo, para que o SUSP já servisse de referência indutora antes mesmo de adquirir vigência legal. Em paralelo, preparar-se-ia uma reunião dos governadores com o presidente, na presença das lideranças políticas, na qual o pacto pela paz seria celebrado, encaminhando-se ao Congresso Nacional a proposta de reforma constitucional consentânea com nosso plano.
Minha derrota, repito, não ocorreu, como seria de se supor, na negociação com governos dos mais diferentes partidos. Ocorreu dentro do governo, cuja coordenação política optou por recuar, quando constatou que eu havia cumprido a missão que julgavam irrealista e fadada ao fracasso. O sucesso da negociação pôs a batata quente nas mãos do poder executivo, na esfera da União –ou seja, em nossas mãos. Caberia ao presidente assumir a posição de protagonista da grande reforma histórica da arquitetura institucional da segurança pública. Esse movimento tenderia a torná-lo também o alvo principal das cobranças populares, preservando, politicamente, os governadores, mesmo que eles continuassem responsáveis pelas polícias estaduais –o que não estava em questão. Caberia ao presidente a liderança de um processo de mudanças na área. Isso seria suficiente para arrastá-lo até o foco, quando a matéria fosse segurança. Por que submeter o presidente ao risco do desgaste político, já havendo tantas outras frentes de luta e desgaste potencial? Não seria mais razoável e prudente deixar a bomba no colo dos governadores? Essa dúvida e a resposta, digamos, tímida e conservadora do governo federal, em 2003, produziram a derrota naquela batalha. Perdi em casa o que alcançara fora. Não lhe desejo a mesma sorte. Por isso, espero que a presidente Dilma respalde plenamente sua iniciativa e o resultado que dela derivar.
Há, contudo, outra possibilidade na qual não quero acreditar: de que V.Exa não tenha um plano sistêmico bem amarrado para negociar e leve aos governadores apenas um balaio de iniciativas nem de longe capazes de tocar nas estruturas, mais um repertório de ações, reinstaurando a velha dinâmica varejista e voluntarista. Digo-lhe isso porque a experiência demonstra que não há negociação efetiva sem a força gravitacional de uma proposta vigorosa e persuasiva. E também porque o sucesso não vai se medir pela geração de consenso, mas pela qualidade substantiva do objeto do consenso. Ou o teatro substituirá a construção política, no sentido nobre da palavra, que sua trajetória pessoal sempre honrou.
O governo FHC contribuiu com o avanço histórico, no campo da segurança, via criação da SENASP, da SENAD, do fundo nacional de segurança pública (FNSP) e do primeiro plano nacional de segurança. Mas a SENASP nasceu desprovida de autoridade e reduzida à função de distribuir recursos na bancada varejista do FNSP. A SENAD nasceu sob chancela militar. O plano reduziu-se a uma listagem invertebrada de boas intenções, de valor heterogêneo –nada a ver com a ordem sistêmica de um plano. O governo tucano também recusou-se a atrair o protagonismo para o presidente. Pelo mesmo cálculo político que seu sucessor faria. Os governos anteriores nem chegaram a esse ponto. Lavaram as mãos no lavabo, antes do pórtico de entrada, deixando ali pendurado --que Dante me perdoe o chiste--qualquer lampejo de esperança para a área em causa.
O governo Dilma, pelas mãos de V.Exa, pode pular a armadilha e deixar para trás o cortejo de céticos. Não desejo engrossar a procissão dos abutres e oportunistas que cultuam o negativo e torcem pelo pior. Espero ter a oportunidade de aplaudir sua vitória com a mesma alegria que sentiria se ela fosse minha. Afinal, ela seria nossa, de todos nós, brasileiros.
Receba meus votos de sucesso e cumprimentos cordiais,
Luiz Eduardo Soares

domingo, 9 de janeiro de 2011

Elite da Tropa 2: projeto literário e intervenção política


Publicado na revista Socialismo & Liberdade, que presta homenagem ao deputado Marcelo Freixo
(Ano II, No 4, Fundação Lauro Campos)

O livro Elite da Tropa 2 é a quarta obra de uma tetralogia à qual dediquei os últimos sete anos de trabalho. A série inclui Cabeça de Porco (escrito com MV Bill e Celso Athayde –Objetiva, 2005), Elite da Tropa (com André Batista e Rodrigo Pimentel –Objetiva, 2006) e Espírito Santo (com Carlos Eduardo Ribeiro Lemos e Rodney Miranda –Objetiva, 2009). A intenção do Cabeça de Porco era mergulhar no mundo de valores, percepções, sentimentos, relações e práticas dos jovens envolvidos com a violência armada, nas áreas mais vulneráveis de cidades situadas em todas as cinco regiões do país. O propósito era compreender, não julgar, e levar os leitores a compartilhar nossa experiência de interlocução com esses jovens. A expectativa era proporcionar um contato empático com um universo ignorado e distante da maioria dos leitores; um universo humano refratado quase sempre pelo véu de estigmas, preconceitos, ódio e temor. Não tencionávamos fazer a apologia da violência ou sequer justificá-la, mas desvelar suas raízes, plantadas fundas como punhais no corpo e na alma de crianças e adolescentes socialmente invisíveis, devastados pela rejeição e a indiferença, pela fome de afeto e reconhecimento (que pode ser mais dolorosa e devastadora do que a fome física), por estigmas, racismo, desigualdades monstruosas e as iniquidades naturalizadas.
A intenção do primeiro Elite da Tropa era a mesma, mas aplicada aos supostos inimigos daqueles jovens focalizados no Cabeça: os policiais. Quem são esses personagens que vestem uniforme, recebem salários, armas e instrução do Estado, e caçam traficantes nos morros, nas vilas, favelas e periferias, como feitores de um escravismo extinto? Quem são esses policiais que, em nome da Lei, a transgridem sem pudor e piedade, matando seus irmãos de classe numa insensata “falsa-guerra” fratricida? No Rio de Janeiro, por exemplo, os números descrevem um genocídio de jovens pobres, na maioria negros: entre 2003 e 2009, inclusive, 7.854 foram mortos por ações policiais. A categoria oficial, “autos-de-resistência”, omite o fato de que, segundo estimativas apoiadas em pesquisas sobre os dados de 2003, cerca de 65% dos aludidos confrontos confrontam apenas a verdade, pois se referem, na realidade, a execuções extra-judiciais. Seriam os policiais indivíduos sádicos, pervertidos, assassinos contumazes por prazer e vocação? Nesse caso, como explicar a escala assombrosa alcançada pela brutalidade individual dos policiais e a manutenção de tamanha regularidade, ao longo do tempo, configura um padrão e apresentando o perfil de uma ... política? Ao mergulhar no universo de emoções, valores, visões de mundo e experiências dos policiais, procuramos compartilhar com os leitores algumas surpresas para quem só opera com estereótipos: lá estão seres humanos como quaisquer de nós, que chegam muito jovens para o processo de formação e cedo aprendem o que depois aplicarão. São cidadãos trabalhadores, oriundos principalmente das classes populares, que cumprem ordens, acreditando, ao fazê-lo, estar honrando seu país, sua instituição e os valores que foram levados a cultuar. Muitos se perdem na corrupção mais degradante; outros, submetidos a treinamentos que emulam a “lavagem cerebral”, convertem-se em máquinas de matar e torturar, confundindo heroísmo com brutalidade letal contra suspeitos e patriotismo com violação dos direitos mais elementares dos segmentos sociais estigmatizados. Nesse contexto, propusemos aos leitores uma pergunta: o problema é individual? Os policiais, individualmente, são “inimigos do povo”? A responsabilidade se esgota neles, enquanto indivíduos? A questão se resume a “desvios de conduta”, como sugerem as declarações oficiais? Ou se trata de um consistente e permanente programa institucional, alicerçado em uma cultura corporativa anti-democrática (refratária aos direitos humanos e aos mandamentos constitucionais) e alimentado por decisões criminosas de autoridades e governantes? Ademais, acrescentamos: esse mecanismo de horror e morte, envolto nas máscaras da segurança pública, não poderia se sustentar sem que a venda da Justiça a cegasse para a barbárie em curso. Todavia, tampouco a Justiça poderia manter-se alheia, se a maioria da sociedade não se omitisse, adotando postura hipócrita e cúmplice.
Tais conclusões conduziram ao terceiro livro, Espírito Santo, cujo foco é o crime organizado plantado no próprio judiciário e infiltrado nas instituições políticas e policiais. O assassinato do jovem, brilhante, honrado e corajoso juiz, Alexandre Martins de Castro Filho, em 2003, é o ponto de partida da narrativa que explora o labirinto das investigações até o desvendamento da trama covarde. Indivíduos têm responsabilidade. Não devemos ser paternalistas ou tapar o sol com a peneira. Mas se não houver espaços políticos e brechas institucionais, apoios coletivos e conexões com interesses maiores, não explicamos a cadeia dos episódios. Mesmo as paixões têm lastros numa realidade mais ampla que as canalizam em determinadas direções e limitam suas possibilidades de expressão criminosa. Por isso, é o Judiciário que está em tela de juízo, não os indivíduos, isoladamente.
Por fim, chegamos ao livro que acaba de ser publicado, Elite da Tropa 2 (em parceria com Cláudio Ferraz, A. Batista e R. Pimentel –Nova Fronteira, 2010). Nessa obra, as principais intenções são as seguintes: (1) chamar a atenção para as milícias e mostrar como elas funcionam e como tiranizam comunidades vulneráveis de modo selvagem. Elas são máfias formadas sobretudo por policiais e constituem as formas mais graves do crime organizado, no Brasil, ligando, organicamente, corrupção e brutalidade policiais às instituições políticas e a outras instituições públicas. (2) Ao contar a história das milícias, procuramos demonstrar que, no Rio, não há mais espaço para falar em corrupção e brutalidade policial como problemas menores, secundários, circunstanciais. Nem é mais legítimo falar em crime e violência, no Rio (mas o ovo da serpente está disseminado, ainda que variações regionais sejam significativas), sem admitir que numerosos contingentes policiais são os mais destacados e poderosos empreendedores das dinâmicas criminosas. Foi-se o tempo em que policiais eram cúmplices por omissão ou mesmo por sociedade passiva. Hoje, no Rio de Janeiro, eles são os principais protagonistas das formas mais perversas e perigosas da criminalidade. Ressalve-se, entretanto, que não generalizamos. Seria absolutamente injusto com dezenas de milhares de profissionais honestos, que arriscam sua vida por salários indignos. Eles são vítimas desse processo: sofrem os efeitos da degradação institucional; pagam o preço da deteriorada imagem pública; sentem-se acuados, humilhados e traídos pela presença arrogante e crescente dos falsos colegas. (3) Ao incluir na trama um militante dos direitos humanos que se elege deputado e luta contra as milícias com desassombro, imensa generosidade e admirável dignidade, prestamos uma homenagem a Marcelo Freixo (deputado estadual pelo PSOL), mas também mostramos que nem tudo está perdido na política e nas polícias (pois há alguns personagens policiais também muito positivos). Um  personagem literário não é uma pessoa real. A ficcionalização que transforma Marcelo Freixo em “Marcelo Freitas” mesclou características reais de Freixo com outras, inspiradas em outras pessoas, e as combinou com alguns elementos imaginários, para permitir sínteses e mergulhos na subjetividade que exigem liberdade criativa. Mas a homenagem é verdadeira e a defesa da política nobre e virtuosa se realizou. (4) A obra procura, ainda, trabalhar em profundidade dilemas éticos, demonstrando não haver cartilhas, dogmas ou gramáticas capazes de abarcar a exuberante e subversiva produtividade do real, que nos desafia continuamente com dilemas inesperados e de imensa complexidade, exigindo da consciência ética a mesma ousadia e fecundidade que se requer da criação estética. E como, para mim, não há política virtuosa, digna, justa, boa ou correta, dissociada da ética, acredito que, tendo discutido questões éticas pela mediação dos dramas vividos pelos personagens, o livro Elite da Tropa 2, também por esse viés, contribui para o debate político.
Antes de concluir, um alerta: as milícias são filhas bastardas da segurança privada informal e ilegal. Na medida em que esta está presente em todo o país, a matriz genética das máfias policiais já se nacionalizou. Explico: com raríssimas exceções, os salários da massa policial são insuficientes, no Brasil –para dizer o mínimo e manter-me fiel a um vocabulário educado. Para sobreviver e garantir a reprodução de sua unidade doméstica, os trabalhadores policiais, em sua maioria, buscam uma segunda ocupação, um “bico”. Vão desempenhá-lo, quase sempre, como é natural, na área de sua especialidade: a segurança. Ocorre que, em quase todo o país –e por boas razões--, é ilegal o servidor da segurança pública vincular-se à segurança privada. Posto não ser permitido fazê-lo formalmente, engaja-se, então, o policial, no setor informal da segurança privada ou nela atua, informalmente. Os malefícios para sua saúde, para seu desempenho na segurança pública e os riscos à sua própria vida são evidentes –as mortes de policiais concentram-se na “folga”. Apesar de tudo isso ser amplamente conhecido, as autoridades fingem nada ver. Não fiscalizam. Não tomam qualquer providência. Afinal, sabem que se fiscalizarem a segurança privada informal, encontrarão seus policiais fazendo o “bico”. E também sabem que se reprimirem essa ilegalidade, a demanda salarial se projetará sobre o governo, provocando o colapso do orçamento –que é, vale repetir, irreal. A Polícia Federal é responsável por essa fiscalização, mas com 14.500 funcionários e uma infinidade de atribuições não teria como realizá-la (mesmo se o desejasse, o que, por óbvio, não é o caso). Os governos estaduais poderiam reivindicar essa atribuição, mediante convênio –como foi feito no passado, por pouco tempo. Mas não têm o menor interesse em meter a mão no vespeiro, optando por preservar o gato-orçamentário, isto é, o financiamento privado (informal e ilegal) da segurança pública. Eis, portanto, o Estado despudoradamente partido: um pé na legalidade, outro na ilegalidade.
O problema maior (há vários outros muito sérios) é este: sob o manto da negligência oficial, prosperam dinâmicas benignas e malignas. As primeiras, a despeito dos males que causam (os já referidos e outros), representam esforços honestos (ainda que ilegais) de homens e mulheres policiais que apenas lutam para completar sua renda. As dinâmicas malignas começam nas ações de policiais corruptos que provocam insegurança para vender segurança; prosseguem na formação de esquadrões da morte e grupos de extermínio; e alcançam o patamar superior de degradação e gravidade quando deságuam na organização de milícias.
Por isso, o livro Elite da Tropa 2 lança este alerta à sociedade: ainda que só o Rio conheça as manifestações mais articuladas e perigosas das milícias, o ovo da serpente já se espalhou pelo país. Até quando os governos continuarão deitados em berço esplêndido, se ufanando do crescimento econômico, alheios ao veneno que avança na retaguarda do Estado, alimentado pelo gato orçamentário e suas implicações?

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

Avaliação e Perspectivas Futuras, na área da segurança pública


BOLETIM CEDES – DEZEMBRO-JANEIRO 2010 – ISSN 1982-1522


Em fevereiro de 2002, foi lançado pelo ainda pré-candidato, Lula, e pelos autores do documento, um plano nacional de segurança pública, em cerimônia no Congresso Nacional, de que participaram o então ministro da Justiça, Aloysio Nunes Ferreira, e os presidentes da Câmara, Aécio Neves, e do Senado, Ramez Tevet. Era a primeira vez que uma campanha presidencial ousava investir tanta energia na produção e na divulgação de um compromisso ambicioso e extenso em área geralmente negligenciada ou reduzida a platitudes e bordões retóricos. O plano formulou diagnóstico, identificou objetivos prioritários e apontou meios e modos para atingi-los, em sucessão modular. Os pontos chave eram os seguintes: (A) partia-se da consideração de que a insegurança pública, em sua multiplicidade de manifestações, constituía uma problemática complexa, porque multidimensional, envolvendo os fatores mais diversos (sociais, econômicos, educacionais, culturais, psicológicos, etc...). Por isso, as políticas preventivas ou destinadas à interceptação das dinâmicas facilitadoras dos fenômenos a evitar deveriam ser inter-setoriais, o que, por sua vez, exigiria a reconfiguração do sujeito da gestão pública, em suas distintas esferas, para que se promovessem ações integradas e territorializadas, isto é, variáveis segundo especificidades locais. (B) Afirmava-se que a arquitetura institucional da segurança pública, legada pela ditadura e consagrada na Constituição de 1988 –particularmente no artigo 144--, é incompatível com o novo quadro democrático e inadequada ao cumprimento de seu mandato constitucional, uma vez que priva a União de maiores responsabilidades, exclui os municípios e condena as polícias estaduais (reduzidas a meias polícias, tanto as civis quanto as militares), em função da estrutura organizacional, à reatividade, à fragmentação, à repetição inercial de velhos padrões autoritários e discricionários fixados na cultura corporativa, ao voluntarismo espasmódico, à ineficiência e ao descontrole. O modelo policial determina a impossibilidade de que se estabeleça uma governança legalista e efetiva. Por isso, firmava-se o compromisso de levar ao Congresso uma proposta de PEC, visando alterar o artigo 144. (C) Paralelamente às reformas institucionais, que se implementariam gradualmente, a médio e longo prazos, postulava-se a criação do Sistema Único de Segurança Pública (SUSP), compreendido como um conjunto de protocolos nacionais regulando e qualificando, sem camisa de força centralizadora, alguns pontos estratégicos para as instituições da segurança pública: formação, capacitação e treinamento dos profissionais, que seriam também valorizados pela fixação de um piso nacional; gestão do conhecimento; gestão institucional com base em dados consistentes, diagnósticos, planejamento, avaliação do executado e monitoramento corretivo; perícia; articulação com políticas preventivas inter-setoriais; controle externo; integração dos municípios ao âmbito da segurança; mudanças no sistema penitenciário; articulação com as demais entidades da Justiça criminal (D) Entendendo-se que a proteção da vida representava a meta suprema e urgente, as armas, a brutalidade policial letal extra-judicial, e o crime organizado, em suas distintas conformações, foram definidos como focos prioritários, a exigir ação integrada e coordenada, sem prejuízo de vários outros focos e metas.
Na medida em que o plano começou a ser implantado, em 2003, o governo federal avaliou que o processo atribuiria ao presidente da República inaudito protagonismo na área da segurança pública, uma vez que lhe caberia liderar uma repactuação de grande vulto. Posto que esse destaque e essa liderança implicariam assunção de novas responsabilidades, concluiu-se que os riscos de desgaste político seriam superiores aos eventuais benefícios, até porque atua, nesse terreno, a contradição entre o ciclo eleitoral (bienal) e o tempo (longo) de maturação de políticas públicas estruturantes, cuja primeira etapa provoca desarranjos e desfuncionalidades, além de resistências corporativas –os frutos sendo colhidos apenas pelos sucessores. Tal análise levou à decisão de desistir do plano e substituí-lo pela performance midiática da polícia federal, voltada, agora, para suspeitos de colarinho branco.
O primeiro mandato terminou com saldo insignificante na segurança, mas o segundo retomou algumas propostas contidas no primeiro plano, ainda que em outras bases. O ministro da Justiça, Tarso Genro, elaborou e implantou o Pronasci (programa nacional de segurança com cidadania), reiterando valores e algum vocabulário conceitual enfatizados no plano anterior, e ampliando a parte do primeiro plano destinada à prevenção --redefinindo-a, detalhando-a e a dotando de recursos mais expressivos.  Na secretaria nacional de segurança pública, Ricardo Balestreri criou a Renaesp (rede nacional de especialização em segurança pública), que veio a se constituir no maior e mais exitoso esforço de qualificação dos profissionais da área, em larga escala.
As reformas institucionais, entretanto, centrais no primeiro plano, permaneceram afastadas do discurso e das práticas, a despeito de movimentos isolados de Balestreri. O SUSP, todavia, voltou a ser evocado e apresentado como horizonte e referência para as políticas de segurança, mas não foi, de fato, implantado.
Por esses motivos, o saldo do segundo mandato, em matéria de segurança pública, é positivo, ainda que muito distante do que teria sido necessário para que se tornasse viável um salto de qualidade. Talvez a virtude mais importante tenha sido a reafirmação de um discurso legalista, em cujo contexto o respeito aos direitos humanos, por um lado, e a eficiência policial, por outro, aparecem como complementares em vez de mutuamente excludentes. Outros dois itens já destacados foram a valorização da formação policial e de políticas preventivas, envolvendo todas as esferas governamentais, especialmente os municípios.
É difícil elaborar um prognóstico para o governo Dilma Roussef, porque a campanha não se comprometeu com nenhum plano para a área. Os indícios apontam, pelo menos na conjuntura da transição, para a preservação do status quo, ou seja, manutenção tanto das virtudes, quanto das deficiências, entre as quais se destaca a recusa a assumir compromissos relativos a mudanças institucionais. Observe-se que a conferência nacional de segurança pública, promovida pelo ministério da Justiça ao longo de 2009 e antecedida por conferências municipais e estaduais, foi orientada, deliberadamente, para o impasse, uma vez que suas regras vetaram votações e determinaram o aproveitamento, nas resoluções finais, de todas as propostas formuladas no âmbito do encontro final. Como era previsível, o documento conclusivo propunha a mudança do artigo 144 e a preservação inalterada deste mesmo artigo. Pesquisa que realizei com Marcos Rolim e Silvia Ramos, em 2009, com o patrocínio do MJ e do PNUD, ouvindo 64.130 policiais e profissionais da segurança pública, em todo o país, demonstrou que 70% desejam a reforma do modelo policial, o que significa alteração do artigo citado. Ou seja, apenas se houvesse unanimidade na sociedade e nas corporações policiais o relatório da conferência nacional incluiria uma proposta que não se auto-anulasse, liberando o ministro para não agir e o protegendo, por consequência, dos desgastes políticos implicados em iniciativas polêmicas.
Deduz-se quão esquivos têm sido os governos federais –sem exceção. O desvio dessa rota não é provável, considerando-se que ela é ditada pela racionalidade do ator político pautado pelo mercado de votos (a quem não interessa sacrificar seu capital político em nome de benefícios a serem colhidos pelos sucessores). O mais provável é que se cozinhe o problema em banho-maria, deixando a bomba no colo dos governadores e mantendo intocada a arquitetura institucional e o modelo de polícia –nossa amarga jabuticaba: a pesada, anti-democrática e disfuncional herança da ditadura. A menos que a sociedade pressione pela formação de uma ampla aliança política, capaz de dividir os custos das mudanças.

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Entrevista sobre Segurança Pública e Conjuntura Política

Entrevista concedida ao repórter Marcelo Xavier Rocha, da revista Época, em 28 de dezembro de 2010.


 1) Como o senhor avalia a segurança pública no futuro governo Dilma Rousseff?


Resposta: Quando candidata, a presidente Dilma quase não se pronunciou sobre o tema ou o fez de forma genérica, mencionando aqui e ali uma ou outra possível iniciativa, como o controle das fronteiras e  a expansão o modelo das UPPs. Não foi apresentado um plano nacional de segurança pública com amplitude e  especificações técnicas. Durante a transição, a presidente referiu-se à segurança apenas para classificá-la como prioridade. Mais não disse. Portanto, seria leviano antecipar juízos. Entretanto, a experiência autoriza afirmar que reformas estruturantes ou se implementam no primeiro ano de mandato, quando é mais fácil vencer resistências e queimar capital político, uma vez que a vitória eleitoral traz consigo lastro para liderar e legitimidade para mudar, ou nunca se fazem. Até porque nosso ciclo eleitoral é bienal. Sendo assim, ou o novo governo guardou muito bem o segredo ou nada tem de concreto a oferecer em matéria de reformas institucionais, no campo da segurança, pois as teria de começar a implantar imediatamente, caso tencionasse realizá-las. Portanto, os indícios apontam, infelizmente, para o imobilismo, relativamente às transformações que considero decisivas para o Brasil (eu e 70% dos policiais e profissionais da segurança pública brasileiros). Tudo indica que vamos continuar convivendo com a arquitetura institucional e o modelo policial fixados no artigo 144 da Constituição, em cujos termos pouca responsabilidade é conferida à União, os municípios são praticamente excluídos, a maior responsabilidade cabe aos governadores, as polícias estaduais --mal pagas-- reduzem-se a duas meias polícias que competem entre si e, em geral, mostram-se reativas e ingovernáveis, refratárias a avaliação e controle externo.

Na ausência de reformas institucionais, temo que nos arrastemos por mais quatro anos insistindo em fazer mais do mesmo, adiando a tarefa histórica de estender à segurança o processo da transição democrática e modernizante, que marcou o país nas últimas décadas.
Por outro lado, tenho esperança de que os avanços conquistados por Tarso Genro e Balestreri não se percam. A Renaesp e o Pronasci têm sido importantes por valorizarem a educação policial e a participação dos municípios na segurança, via políticas preventivas. Espero que o novo ministro mantenha e expanda ambos os programas. Mas gostaria que ele reconhecesse que esses esforços não podem substituir as inadiáveis reformas institucionais. Todavia, há muito a fazer enquanto as reformas não vêm. O melhor caminho seria retomar o plano de normatização do Susp, sistema único de segurança público, que define parâmetros nacionais de qualidade para as áreas chave das instituições da segurança pública, como a formação, a gestão do conhecimento, a gestão institucional, a perícia e o controle externo.

2) O que o senhor pensa do perfil escolhido para comandar o Ministério da Justiça? Eduardo Cardozo é um político, mas com conhecimento técnico. (O ex-ministro Tarso Genro, em entrevista ao Estadão, falou que será um trabalho de continuação e superação)

Resposta: Não conheço o novo ministro. Ele tem a imagem de um político que fez escolhas difíceis e justas, contra conveniências e cumplicidades, em momentos críticos. Arriscou a carreira por convicções, o que está fora de moda. Por que não poderia surpreender, fazendo, agora, a coisa certa, metendo a mão em vespeiros mesmo sob risco do desgaste político? No ministério da Justiça, há dois destinos: equilibrar-se no cargo para merecer a foto na aristocrática sala de retratos, onde se conta a história do país, ou fazê-la. Por que não confiar na melhor hipótese?

3) Qual deve ser a prioridade do próximo governo? É realmente dar continuidade ao Pronasci?

Resposta: O Pronasci merece ser mantido e fortalecido, porque estimula iniciativas preventivas e municipais, mas está longe de corresponder a uma política nacional de segurança. Seria preciso ir além, tratando das reformas já mencionadas, que deveriam vir associadas à normatização do Susp.

4) Ficou claro para o senhor qual foi a prioridade do atual governo Lula?

Resposta: A prioridade, no primeiro mandato, foi substituir, por ações espetaculares e midiáticas da polícia federal, a promessa de uma audaciosa reforma institucional, destacada no plano nacional de segurança pública que o presidente Lula apresentou ao país, em fevereiro de 2002, antes mesmo de oficializar sua candidatura. No segundo mandato, as iniciativas foram muito mais consistentes e as prioridades, mais positivas: o investimento na educação policial (Renaesp), liderado pelo secretário nacional, Ricardo Balestreri, e a aposta em ações locais preventivas, conduzida pelo ministro Tarso Genro. Por isso, o segundo mandato registrou avanços significativos, ainda que, mais uma vez, ao custo do sacrifício das reformas institucionais, cujo preço político evitou-se pagar.