P.S. em 13 de janeiro: Ontem, publiquei a carta abaixo, cumprimentando o ministro pela posição manifestada por seu secretário, Pedro Abramovay. Hoje, noticia-se que o ministro desautorizou o secretário e defendeu posição oposta. Resultado: estou perplexo; o secretário, enfraquecido; o ministro, ideologicamente alinhado com os adversários históricos do PT. Mas nem tudo está perdido: O Globo, hoje, apoiando a proposta do secretário em belo editorial, mostra que o espectro político não pode mais ser interpretado com velhas classificações e que talvez o ministro tenha exagerado na dose e sido mais realista do que o rei ao sepultar avanços com os quais tantos de nós sonhávamos. Quem sabe ele se dará conta de que o erro não foi do Pedro. Afinal, o governo está só começando. Ainda haverá tempo para mudanças. Moral da história: quem não gosta de planos para campanhas presidenciais deveria atentar para as consequências desastrosas de eleições sem planos. Os governos começam batendo cabeça, perdidos, e mesmo equipes pequenas, qualificadas, intelectualmente densas, sangram com fraturas expostas. Eis aí mais uma razão a justificar o temor que justifico na carta-aberta, abaixo: Ministro, não negocie com governadores questões relativas à segurança sem um plano sistêmico. Há o risco de voltarmos ao varejão voluntarista, perdendo mais uma oportunidade histórica de avanço consistente e sustentável.
Mesmo defasada pela polêmica entre o ministro e o secretário, mantenho postada a carta aberta, porque ela contempla tópicos que permanecem pertinentes.
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Rio de Janeiro, 12 de janeiro de 2011.
Mesmo defasada pela polêmica entre o ministro e o secretário, mantenho postada a carta aberta, porque ela contempla tópicos que permanecem pertinentes.
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Rio de Janeiro, 12 de janeiro de 2011.
Prezado Ministro José Eduardo Cardozo,
em primeiro lugar, parabéns pela nomeação de sua equipe. Regina Mikki (nova secretária nacional de segurança pública) e Pedro Abramovay (novo titular da secretaria de políticas sobre drogas) são excelentes profissionais, com trajetórias respeitáveis. Mais que isso, admiráveis. Regina tornou-se nome nacional e referência internacional quando, ao lado do prefeito José de Filipi, revolucionou Diadema. A tal ponto que o município mais violento do país tornou-se exemplo de segurança pública. Definida a redução de homicídios como prioridade absoluta, a receita foi inteligente e eficaz: investimento de energia infatigável na promoção de medidas preventivas por meio da integração de políticas inter-setoriais. Regina e Filipi apostaram também na cooperação entre a Guarda civil municipal e as polícias estaduais, em muita informação qualificada, bom planejamento e avaliações constantes para identificar erros e corrigi-los. A dedicação permanente do prefeito foi decisiva, infundindo autoridade política nas ações da secretária. Regina tem o privilégio de herdar o legado de conquistas de um excelente antecessor, Ricardo Balestreri.
Pedro tomou posse com o pé direito, criticando o encarceramento perverso dos pequenos traficantes e se recusando a endossar o triste processo brasileiro de criminalização da pobreza. Enjaular jovens que nunca perpetraram atos violentos nem se armaram é um modo caro de torná-los piores, fechando-lhes portas e horizontes, esmagando sua auto-estima e oferecendo-os de bandeja para redes criminosas.
Outro ótimo sinal já na partida, ministro, foi a transferência da antiga SENAD –hoje, secretaria nacional de políticas sobre drogas—do gabinete de segurança institucional, sob comando militar, para seu ministério. Sabemos que a localização ideal seria o Ministério da Saúde, mas um dia chegaremos lá. Nesse momento, foi o movimento politicamente viável, que deve ser saudado como um avanço.
Estimulado por tantas boas notícias e com esperança de que elas não sejam frustradas mais adiante, tomo a liberdade de me dirigir a V.Exa nesta carta aberta. Os jornais divulgaram sua intenção de visitar governadores para lhes propor um pacto nacional, de Estado, não de governo, em torno da segurança pública. Que ótimo, ministro. Tenho me dedicado a essa causa há mais tempo do que gostaria de admitir. Escrevi alguns livros a respeito, sustentando essa mesma visão, digamos, ecumênica, não partidária, não voluntarista, não condicionada pelo ciclo eleitoral e por slogans retóricos. Cheguei a cunhar um título para o novo contrato social e político: “pacto pela paz”. Não é possível que tenhamos, como nação, evoluído tanto --estabilizando a moeda, racionalizando a gestão pública, fortalecendo as instituições democráticas e reduzindo as desigualdades--, e que continuemos tão primitivos e irracionais, voluntaristas e reativos, dispersivos e superficiais, tão estupidamente dominados por cálculos mesquinhos, corporativos e eleitoreiros, tão demagógicos e populistas no enfrentamento dos dilemas da segurança pública. O Brasil atingiu a maturidade em vários campos, por que a segurança tem de permanecer tão atrasada?
Ministro, o Pronasci é um programa muito positivo, que deve ser preservado e ampliado, sobretudo se puder vir associado a um aperfeiçoamento na coordenação integradora, valorizando-se crescentemente o poder local, os gestores municipais. No entanto, ministro, não creia que o Pronasci resolverá nossos problemas, nem mesmo do ponto de vista de uma expectativa modesta. A sabedoria do Pronasci não será suficiente para mudar as instituições da segurança pública. E sem mudá-las, não sairemos da enrascada em que nos metemos. O Pronasci é um belo complemento de uma política de reformas estruturais, seja da arquitetura institucional do campo da segurança, seja do modelo policial. Sozinho, não se manterá de pé.
Os GGIs municipais e estaduais (Gabinetes de Gestão Integrada da Segurança Pública), ministro, são a melhor ideia para reduzir os danos produzidos pelas estruturas organizacionais vigentes, mas só funcionam excepcionalmente, porque dependem de boa vontade, uma vez que têm, por natureza, baixíssimo grau de institucionalidade. Institucionalizá-los seria inconstitucional, justamente porque eles são dispositivos voltados para inverter a fragmentação conflitiva decorrente do desenho constitucional, expresso no artigo 144. O mesmo vale para o SUSP, ministro. O sistema único de segurança pública deveria ser um conjunto de normas infra-constitucionais que regulariam aspectos decisivos das polícias. Por isso, não faz sentido sequer pensá-lo fora do contexto das reformas institucionais, apenas em cujo âmbito o controle de qualidade (tal como desenhado no SUSP) faria sentido.
Portanto, ministro, peça à sua equipe que não fale do GGI e do SUSP se uma política estruturante e efetivamente reformista não está em suas cogitações. Seria triste ver siglas que um dia representaram a esperança de transformações convertidas em fetiches ou peças de retórica.
Ministro, a consulta e, melhor ainda, a negociação com os governadores é condição sine qua non de sucesso em qualquer processo de mudanças nessa área. Torço por seu êxito. Mas acredito ser meu dever compartilhar com o senhor algumas reflexões. Falo de experiência vivida. Não fui ministro, mas como secretário nacional de segurança segui a mesma rota que o senhor se dispõe a percorrer. Visitei todos os governadores. Consultei-os e negociei com eles o apoio ao que, à época, era nosso plano nacional de segurança. O presidente Lula foi eleito para o primeiro mandato defendendo-o. Coube-me o privilégio de começar a implementá-lo. Iniciei como o senhor, na via real do poder. Não quero desanimá-lo, ministro. Pelo contrário, quero que minha derrota o ajude a driblar obstáculos, porque o Brasil precisa de seu triunfo. Pois saiba que minha derrota não foi provocada pelos governadores. Mesmo os mais arredios terminaram por concordar com nossa proposta. Ela envolvia providências práticas, nos estados --relativas às polícias civis e militares--, que seriam adotadas pelos governadores, em observância estrita ao princípio federativo, para que o SUSP já servisse de referência indutora antes mesmo de adquirir vigência legal. Em paralelo, preparar-se-ia uma reunião dos governadores com o presidente, na presença das lideranças políticas, na qual o pacto pela paz seria celebrado, encaminhando-se ao Congresso Nacional a proposta de reforma constitucional consentânea com nosso plano.
Minha derrota, repito, não ocorreu, como seria de se supor, na negociação com governos dos mais diferentes partidos. Ocorreu dentro do governo, cuja coordenação política optou por recuar, quando constatou que eu havia cumprido a missão que julgavam irrealista e fadada ao fracasso. O sucesso da negociação pôs a batata quente nas mãos do poder executivo, na esfera da União –ou seja, em nossas mãos. Caberia ao presidente assumir a posição de protagonista da grande reforma histórica da arquitetura institucional da segurança pública. Esse movimento tenderia a torná-lo também o alvo principal das cobranças populares, preservando, politicamente, os governadores, mesmo que eles continuassem responsáveis pelas polícias estaduais –o que não estava em questão. Caberia ao presidente a liderança de um processo de mudanças na área. Isso seria suficiente para arrastá-lo até o foco, quando a matéria fosse segurança. Por que submeter o presidente ao risco do desgaste político, já havendo tantas outras frentes de luta e desgaste potencial? Não seria mais razoável e prudente deixar a bomba no colo dos governadores? Essa dúvida e a resposta, digamos, tímida e conservadora do governo federal, em 2003, produziram a derrota naquela batalha. Perdi em casa o que alcançara fora. Não lhe desejo a mesma sorte. Por isso, espero que a presidente Dilma respalde plenamente sua iniciativa e o resultado que dela derivar.
Há, contudo, outra possibilidade na qual não quero acreditar: de que V.Exa não tenha um plano sistêmico bem amarrado para negociar e leve aos governadores apenas um balaio de iniciativas nem de longe capazes de tocar nas estruturas, mais um repertório de ações, reinstaurando a velha dinâmica varejista e voluntarista. Digo-lhe isso porque a experiência demonstra que não há negociação efetiva sem a força gravitacional de uma proposta vigorosa e persuasiva. E também porque o sucesso não vai se medir pela geração de consenso, mas pela qualidade substantiva do objeto do consenso. Ou o teatro substituirá a construção política, no sentido nobre da palavra, que sua trajetória pessoal sempre honrou.
O governo FHC contribuiu com o avanço histórico, no campo da segurança, via criação da SENASP, da SENAD, do fundo nacional de segurança pública (FNSP) e do primeiro plano nacional de segurança. Mas a SENASP nasceu desprovida de autoridade e reduzida à função de distribuir recursos na bancada varejista do FNSP. A SENAD nasceu sob chancela militar. O plano reduziu-se a uma listagem invertebrada de boas intenções, de valor heterogêneo –nada a ver com a ordem sistêmica de um plano. O governo tucano também recusou-se a atrair o protagonismo para o presidente. Pelo mesmo cálculo político que seu sucessor faria. Os governos anteriores nem chegaram a esse ponto. Lavaram as mãos no lavabo, antes do pórtico de entrada, deixando ali pendurado --que Dante me perdoe o chiste--qualquer lampejo de esperança para a área em causa.
O governo Dilma, pelas mãos de V.Exa, pode pular a armadilha e deixar para trás o cortejo de céticos. Não desejo engrossar a procissão dos abutres e oportunistas que cultuam o negativo e torcem pelo pior. Espero ter a oportunidade de aplaudir sua vitória com a mesma alegria que sentiria se ela fosse minha. Afinal, ela seria nossa, de todos nós, brasileiros.
Receba meus votos de sucesso e cumprimentos cordiais,
Luiz Eduardo Soares