Entrevista
HESITO, LOGO, COEXISTO
Luiz Eduardo Soares fala sobre literatura e ética, política e segurança pública. E revela como um episódio vivido numa favela carioca ajudou a definir sua trajetória
por Leandro Saraiva
A carreira de Luiz Eduardo Soares talvez seja tão excepcional quanto a de Tropa de Elite 2, filme para o qual, aliás, o antropólogo, escritor e especialista em segurança pública contribuiu de forma direta e importante, por meio de um diálogo muito próximo com o diretor e produtor José Padilha estabelecido desde a entrevista concedida ao cineasta para o documentário Ônibus 174 (2002).
A atividade pública de Soares não respeita as tradicionais fronteiras entre academia, política pública, militância, presença na mídia e expressão artística, reinventando o lugar contemporâneo do intelectual e permitindo contribuições fundamentais, como, por exemplo, o eficiente ataque à cobertura midiática maniqueísta e ufanista da recente crise de segurança pública carioca que, em nome da “vitória contra o tráfico”, varreu para baixo do tapete a transformação mafiosa em curso na polícia do Rio com a expansão das milícias.
O choque de lucidez propiciado por suas entrevistas potencializa e recria sua intervenção em outros campos, como na parceria com Padilha, e em seus best-sellers, que traduzem uma múltipla e profunda experiência de convívio e combate à barbárie criminosa em narrativas ao mesmo tempo envolventes e esclarecedoras.
Cientista social renomado, com importantes ensaios na área da filosofia política com destaque para a questão da crise do sujeito universal iluminista e das novas formas da esfera política contemporânea, Soares, no início dos anos 1990, coordenou uma equipe de pesquisa do Instituto de Estudos da Religião (Iser) sobre violência e criminalidade no Rio de Janeiro. Esforço amplo, interdisciplinar e em diálogo cerrado com o movimento Viva Rio, que concilia ações de grande impacto midiático com propostas de políticas públicas que visam à garantia dos direitos civis.
Foi no contexto desse esforço, que associava pesquisa e militância – sobre o qual escreveu textos marcantes relativos aos novos movimentos sociais (veja-se os ensaios “O herói serial” e “O mágico de oz” em Violência e criminalidade no Rio de Janeiro, Relume-Dumará/Iser, 1996) –, que Soares e a equipe por ele coordenada formularam um programa que o levaria ao posto de subsecretário de Segurança e de coordenador de Segurança, Justiça e Cidadania do estado do Rio de Janeiro (cargo que ocupou entre janeiro de 1999 e março de 2000).
Ali, tentou combater o que batizou de “banda podre” da polícia carioca (que de lá para cá cresceu e se tornou a rede de milícias mafiosas que infesta a cidade) e implementar um amplo programa de reformas que incluía transformações radicais, como a Delegacia Legal e os Mutirões pela Paz (que prenunciavam as atuais Unidades de Polícia Pacificadora, UPPs, com a diferença de estarem organicamente ligados a uma reforma sistêmica).
Derrotado pelos poderes atávicos que combatia e ameaçado de morte, teve que se afastar do País com a família. Essa experiência, muito dura, mas também tremendamente esclarecedora dos bastidores da política, está narrada em Meu casaco de general – 500 dias no front da segurança pública do Rio de Janeiro (Cia das Letras, 2000), livro que se lê como testemunho político, como descrição etnográfica desse campo, como debate em torno de um programa radical e sistêmico para a área da segurança pública, mas, talvez, antes de tudo isso, como um thriller empolgante.
Meu casaco de general abriu caminho para uma série de livros do autor – que não abandonou o trabalho como professor, nem como eventual gestor público da área de segurança (foi secretário nacional no início do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e secretário municipal do município fluminense de Nova Iguaçu) –, tendo sido experimentadas parcerias de criação com pessoas envolvidas nos contextos em questão e formas narrativas. Objetos literários não identificados, esses livros certamente são romances mas trazem misturados em sua massa ficcional elementos de descrição de corte antropológico, reflexões ensaísticas, cenas dramáticas que oscilam entre o teatro e o roteiro de cinema, mergulhos líricos em monólogos ou em momentos de discurso indireto embebidos da subjetividade alheia.
Tudo isso “baseado em fatos reais”, poderíamos dizer, repetindo a fórmula da indústria do entretenimento. Mas há também uma variação da posição do narrador que produz nos leitores um deslocamento de posições sociais e suspensão dos automatismos e estereótipos, gerando uma abertura e indeterminação dos julgamentos morais. Ver a barbárie com olhos e coração surpresos talvez seja a única chance de invenção civilizatória.
Retrato do Brasil – Dentro do conjunto de seus livros, o último, Elite da Tropa 2 [Nova Fronteira, 2010], integra um grupo especial, o de obras dedicadas à narração de histórias contemporâneas de violência e crime. Como foram desenhados o projeto e a realização desses livros?
Luiz Eduardo Soares – O projeto nasceu em 2002. Apresentei à editora Objetiva a ideia de uma tetralogia: (i) entrando no tráfico, (ii) saindo do tráfico, (iii) a polícia e (iv) a prisão, que acabou por se tornar uma trilogia. As duas primeiras ideias se tornaram o Cabeça de porco [Objetiva, 2005]; a polícia foi abordada em Elite da tropa 1 [Objetiva, 2006], e a prisão nunca foi tratada. No lugar dela, digamos, surgiu Espírito Santo [Objetiva, 2009], tratando de um caso ocorrido naquele estado – o assassinato do juiz Alexandre Martins – e mostrando que o Judiciário também é plataforma de corrupção e crime organizado. O Elite da tropa 2 não estava no projeto de 2002, e durante certo tempo resisti à ideia por não querer produzir mais do mesmo. Mas ele veio como resposta à emergência das milícias, servindo de mote à vontade de um mergulho mais intenso na subjetividade e na moralidade dos policiais.
Cabeça de porco, que deu origem à série, foi imaginado numa conversa com [o produtor cultural] Celso Athayde e, logo incluímos o[o rapper MV] Bill. Seria um mergulho no universo de jovens envolvidos com violência, particularmente com o tráfico armado, nas periferias de cinco regiões brasileiras. A intenção era, antes de julgá-los, ouvi-los, compreendê-los, distinguindo itinerários, múltiplas formas de constituição destes sujeitos “violentos” – na contramão de categorias generalizantes, que servem para diluir singularidades e produzir estigmas. Esse mergulho em busca do outro eu não poderia fazer sem Bill e Celso.
O mergulho já estava, aliás, em curso nos registros que faziam para o documentário Falcão [2006]. Eu trazia um olhar externo que se contrapunha ao deles e o complementava. Nós assinamos os capítulos, formando um mosaico. No livro, não sou o cientista social que interpreta o que eles escrevem. A minha voz soma-se ao coro, com desarmonias e convergências.
O segundo livro seria dedicado, por assim dizer, aos “inimigos”. Era preciso, mais uma vez, mergulhar no universo, agora policial, buscando uma perspectiva surpreendente, que suspendesse os estigmas. De novo, eu precisava de parceiros vindos daquele mundo, que falassem de dentro e pudessem ouvir seus colegas como tais, como parceiros. Eu era amigo de Rodrigo Pimentel, ex-capitão do Bope [Batalhão de Operações Policiais Especiais da Polícia Militar do Rio de Janeiro], há bastante tempo, e ele sugeriu que trouxéssemos André Batista para o projeto.
A história de vida de André é uma matriz narrativa extraordinária, vale como uma radiografia do Rio de Janeiro. Sua experiência entre o que ele vê e vive como a guerra dos combates noturnos nas favelas do Rio e o cotidiano de estudante bolsista de direito da PUC, com seus colegas da elite carioca que debatem os temas sociais e jurídicos fumando um baseado expõe a fratura da sociedade carioca, e talvez da nacional. De um lado estão aqueles que é preciso matar, do outro os que são modelos a admirar? Essa fratura, que tem uma face de cumplicidade e outra de incomunicabilidade, espécie de apartheid psicológico, cultural e prático, esse abismo que separa duas dimensões, é sintetizada no percurso cotidiano do personagem narrador de “Diário da guerra” [primeira parte de Elite da tropa 1, inspirada em André, que, durante o amanhecer, volta da guerra para seu batalhão, lava o sangue e suas cicatrizes, veste roupas civis e, num prosaico ônibus em direção à Gávea, se dirige à PUC]. A relação criativa entre nós três foi, acredito, inovadora.
Enquanto Cabeça foi composto como mosaico de textos assinados, Elite é escrito apenas por mim. Mas considero os parceiros como coautores, porque eles não são apenas fontes que eu possa citar. Durante um ano, nós nos encontrávamos e passávamos juntos os sábados. Eu os ouvia sem gravar ou anotar nada para que os casos, a voz e o tom começassem a se destacar. Eles foram fundamentais, mas quem escreveu fui eu. Até porque eu gostaria que fosse um trabalho literário, de construção de vozes narrativas. Na segunda parte do livro [“Dois anos depois: a cidade beija a lona”], há um movimento do palco das favelas e dos combates para os bastidores políticos.
RB – Essa segunda parte do Elite da Tropa 1 prenuncia a perspectiva da politização da experiência imediata do guerreiro do Bope, seja ela a dos coautores, Pimentel e Batista, transfigurada no narrador da primeira parte do livro, seja a do capitão Nascimento, do filme Tropa de Elite. É nessa virada da parte 1 para parte 2 – que, no cinema, foi feita do primeiro para o segundo filme – que se manifesta mais explicitamente a sua vivência direta como subsecretário. Você narrou essa experiência em primeira pessoa e em forma de relato não ficcional em Meu casaco de general. A segunda parte de Elite da tropa 1 pode ser vista como a versão ficcionalizada e organizada em terceira pessoa, de modo mas onisciente, do que você viveu?
LES – Digamos que o léxico é realista, traduz ou alude ao que foi, entre aspas, “realmente vivido”. E a sintaxe desses trabalhos é ficcional, submetida a estratégias narrativas. Eu combino personagens e acontecimentos, traços de pessoas reais, eventos, deslocando cenários e reunindo tudo numa única trama, buscando compor algo que fosse mais revelador.
RB – A lógica de funcionamento...
LES – ...que se revela também por meio de conflitos ficcionalmente compostos, exacerbados para suscitar emoções mais fortes e, ao mesmo tempo, evidenciar as lógicas em curso. Dificilmente no Elite da tropa 1 o fato narrado não aconteceu, não foi por mim testemunhado, quando estive na Secretaria de Segurança, ou não foi a mim relatado. Houve um grande trabalho de edição, com os episódios recombinados de um modo que subverte a história real, mas dela se reapropria. Aliás, acho que há um pecado na segunda parte: o próprio Domingos de Oliveira [com quem Soares escreveu a peça teatral Confronto, baseada na segunda parte de Tropa de Elite 1] dizia que gostava do livro, mas apontava uma abundância de personagens que dificultava o acompanhamento.
RB – O livro traz, no final, uma exposição didática das tramas por parte dos personagens da inteligência policial...
LES – É verdade, mas aí já é política de redução de danos.
RB – Na peça escrita com Domingos já há uma redução, e o roteiro do Tropa de Elite 2 tem uma redução muito maior daquela abundância de tramas e personagens políticos. Ganha-se em impacto e capacidade de comunicação de questões centrais, mas se perde alguma coisa quanto ao grau de imponderabilidade do cipoal de alianças e corrupções.
LES – Você fez a leitura mais benigna, mas mais interessante. De fato, é como se fosse um processo metastático do filme Bebê de Rosemary, de Polanski. A cada momento, uma nova trama nasce, escapa ao seu controle. Infinitas ramificações e o sentir-se perdido entre os personagens são partes do problema. Por essa estratégia de composição narrativa, o leitor consegue vivenciar o que significa perder-se e sentir-se cercado por redes que você não controla e sequer consegue descrever.
RB – Essa complexidade da trama política em torno do crime organizado está presente também em Espírito Santo e em Elite da Tropa 2...
LES – Mais uma vez, nos dois casos, a vivência e a convivência com os parceiros foram fundamentais. Carlos Eduardo Ribeiro Lemos é juiz no Espírito Santo e era o principal parceiro de trabalho e amigo de Alexandre Martins Castro Filho, jovem juiz assassinado pelo crime organizado em retaliação à perseguição comandada por eles. E Rodney [Rocha Miranda] se juntara a eles como secretário de Segurança do Espírito Santo, nomeado em meio à crise provocada pela ação da dupla de juízes, para conduzir a investigação do assassinato. Construir o perfil de Alexandre, personagem sob vários aspectos extraordinário, passava pela costura da trama mafiosa que, no Espírito Santo, praticamente prenuncia o que pode vir a se firmar no Rio e em outros estados com o alastramento do câncer das milícias. Para tecer essas linhas, meus parceiros foram cruciais, mas, por outro lado, já que quem escreveu cada uma delas fui eu, o livro é autoral.
Da mesma maneira procedi em Elite da Tropa 2. Fui eu que escrevi, mas os outros foram importantíssimos, particularmente o Cláudio Ferraz, titular da Draco [Delegacia de Repressão ao Crime Organizado], responsável por 400 das 500 prisões de milicianos no estado nos últimos 4 anos. Eu já escrevi sobre as milícias como pesquisador; outros colegas já se debruçam sobre o tema há algum tempo; Marcelo Freixo [deputado estadual pelo PSOL] as combatia na política; algumas lideranças comunitárias tinham a coragem de denunciá-las etc. O tema foi se impondo. Até porque as milícias são filhas bastardas de tudo que eu combatera no processo relatado em Meu casaco de general: no Rio de Janeiro, apesar dos milhares de policiais honestos, o crime é a polícia, e a polícia é o crime, com protagonismo e empreendedorismo criminal.
Tínhamos dados de pesquisas, denúncias, artigos, mas isso era insuficiente para o mergulho, que, para não repetir o livro anterior como uma fórmula, teria que ir mais fundo na subjetividade e nos dilemas morais dos policiais. Aí o Cláudio Ferraz me telefonou. Ele queria escrever um livro sobre sua experiência assombrosa na Draco, e foi o que fizemos. Cláudio trouxe todas as investigações, eu fui com ele às delegacias, entrevistei os inspetores, os colegas de trabalho. Marcelo me deu os DVDs com as audiências públicas que ele presidiu, me concedeu longas entrevistas. Novamente, Pimentel e Batista trouxeram suas experiências e nasceu Elite da tropa 2. Eu acho que há muito coerência nessa trajetória.
RB – Meu casaco de general parece estar na origem desse ciclo narrativo de seu trabalho. Poder-se-ia dizer que a composição da narrativa do livro, misto de antropologia política, romance, denúncia militante e catarse pessoal, foi a descoberta de um caminho de experimentação expressiva?
LES –Meu casaco de general é inteiramente distinto, porque pretende ser fiel à experiência vivida, até o ponto em que isso seja possível. A intenção de um relato realista vinha de antes. Havia a intenção de relatar o jogo político que vem definindo a política de segurança desde antes da eleição de Anthony Garotinho [governador do Rio de Janeiro entre 1999 e 2002].
Meu sonho era fazer uma etnografia do poder na área de segurança pública. Atravessar esse muro que separa os bastidores do proscênio e descrever os processos de tomada de decisão, as disputas micropolíticas, as vaidades, os problemas emocionais e pessoais. Eu contribuíra para a eleição de Garotinho com um livro sobre segurança pública escrito pela equipe que eu coordenava e encampado por ele como peça de programa e campanha. Como retorno, pedi a ele que me facultasse o acesso aos bastidores políticos. O que ele, afinal, fez, na forma de um convite para que eu integrasse a Secretaria de Segurança Pública. Apesar do custo desse pacto fáustico, talvez fosse mesmo o preço necessário para ter acesso: envolver-se.
Mas para além do projeto intelectual, houve um evento, relatado em Meu casaco de general, logo em sua abertura, que foi para mim definitivo para desencadear esses livros sobre os quais estamos conversando. Foi no início da implantação do Mutirão pela Paz, que pretendia acabar com as incursões, oferecendo às favelas um serviço de segurança 24 horas, com policiais respeitosos da legalidade e dos direitos humanos, enfim, um policiamento como o do Leblon. Isso serviria como uma plataforma, de base, a partir da qual os serviços sociais, os deveres, as responsabilidades sociais do Estado - educação, saúde, urbanização etc. - poderiam ser cumpridos. Enfim, basicamente o mesmo projeto das UPPs atuais.
Fomos em comitiva oficial, na qual estava também a vice-governadora, Benedita da Silva, ao Jacarezinho, com a presença massiva da mídia. A minha intenção era apresentar a ideia, mas sobretudo ouvir, redefinir a relação com a comunidade. Depois de muita hesitação, a primeira mulher tomou a palavra. Primeiro, disse que era muito estranho que nós estivéssemos ali. Na falta de eleições, nossa presença era estranhíssima, mas algo promissor. Por isso, ela se dispunha a falar. Ela, então, relatou o assassinato de seu sobrinho na porta de sua casa, cometido pela polícia de modo bárbaro. Ela se emocionou. E era tão intenso o relato, tão forte o testemunho, que os representantes da mídia ali presentes desligaram seus equipamentos espontaneamente, por pudor e respeito. Nós todos nos comovemos e ficamos em silêncio. Depois desse depoimento, outro se seguiu e depois outro... e era como se um coro replicasse, no fundo, o mesmo relato. Ainda que todos nós soubéssemos daquela verdade, nos demos conta de que não sabíamos. Mais de mil pessoas são mortas por ações policiais todo ano no estado do Rio de Janeiro. Esse é um numero bárbaro, inaceitável, configura uma espécie de genocídio de jovens pobres e negros. Sim, eu sei, eu escrevo sobre isso, eu reitero, eu denuncio. Essa informação circula, não é nova. Mas de que maneira essa informação é metabolizada? Que lugar ela ocupa na economia emocional e psicológica de cada um? Eu acho que circula e sai pela urina, se mistura com muitas outras informações, como o clima, as contas a pagar, o exame clínico a fazer etc. Isso não ocupa o lugar do incomensurável, do indizível, isso não traumatiza, não se instala como o Real, no sentido lacaniano, que insiste em aparecer e nos assombrar. Nesse sentido, essa verdade não é conhecida. Na última intervenção daquele dia, um jovem, o único homem entre várias mulheres que choravam seus mortos, relatou, muito emocionado, o desespero e impotência sentidos poucas semanas antes depois de ele ver mais uma pilha de cadáveres de conhecidos seus, em mais uma madrugada, momento em ele se sentou, sozinho, na sala da associação de moradores e, vendo o dia se anunciar, pensou: a sociedade vai amanhecer para mais um dia e a sua rotina vai se seguir, sem a menor percepção – no sentido mais profundo a que eu me referi – do que aconteceu aqui nesta noite.
Naquele instante, eu recebi uma mensagem sobre a minha missão. Existem momentos nos quais você dialoga consigo mesmo e traduz algum evento como uma mensagem para você mesmo, um marco a partir do qual você reorganiza sua ordem interna, seu entendimento sobre suas possíveis funções no mundo, o sentido de sua passagem pela vida. Este foi um momento assim para mim. Eu entendi que cabia a mim me esforçar para contar essa história numa dimensão não simplesmente cognitiva, mas de um modo que contivesse em si o antídoto do reducionismo intelectualista. Talvez só uma narrativa de natureza estética fosse capaz de criar o laço, de promover o encontro, de criar essa relação imaginaria empática, capaz de fazer outros sentirem o que senti naquele dia, no Jacarezinho. Esse momento, muito marcante, que abre Meu casaco de general está na origem deste projeto.
RB – No texto de introdução do livro Violência e criminalidade no Rio de Janeiro, citando o filósofo pragmatista americano Richard Rorty você já falava da meta de “ver pessoas estranhas como companheiras de sofrimento” como algo a ser atingido mais pela imaginação do que pela cognição. E fazia uma aposta, moral e política, na literatura e na etnografia, como modelos de imaginação do mundo do outro. Até onde vai a conexão entre essas reflexões e a experiência quase epifânica no Jacarezinho?
LES – Esse fio da meada que costuma passar despercebido entre faces complementares do que tenho tentado realizar é muito importante para mim. Venho experimentando a narrativa literária desde o Experimento de Avelar, romance publicado em 1997, e A toast to fear, um texto híbrido, publicado somente em inglês, composto de fragmentos etnográficos e de flashes memorialísticos que buscam dar conta da experiência de um jovem na ditadura brasileira. Quanto a esses experimentos, falo de arte, ou estética, como a construção de campos imaginários de ressonância que estimulem experiências de trânsito, de transe até, um êxtase que suspende a consciência imediata e permite o deslocamento imaginário para a posição do outro. O estágio moral é atingido quando o sujeito é capaz de se colocar na posição do outro em sua autonomia e diferença, como diz Kant, sem instrumentalizá-lo. É assim que tenho tentado cumprir a missão que entendi ter recebido daquelas pessoas que me contaram suas histórias naquela dia no Jacarezinho.
RB – Pôr-se no lugar do outro como ideia reguladora do esforço político e do esforço intelectual... Reúnem-se aí pontas do novelo de seu trabalho, da escrita como experimentação ao mesmo tempo etnográfica, ensaística e literário-narrativa e também da política como experimentação, no sentido que você explicita nos artigos de Violência e criminalidade, de movimentos da sociedade civil que lançam apostas e articulam arcos de aliança e programas de ação na medida de suas capacidades de mobilização naquele momento. Essa sobreposição de experimentações seria, portanto, algo específico de seu trabalho que, de certa forma, reinventa o lugar do intelectual engajado.
LES – Creio que, para mim, é fundamental a ideia da impossibilidade de a regra dar conta do real. Há um vazio instilado na própria definição do agente, esse vazio da indeterminação e da incerteza, o potencial aberto de interferência. É o vazio do novo, da criação, que é também fonte de angústia e de medo, porque aponta para a imprevisibilidade, para a finitude, para a morte, para a alteridade, que é o desconhecido, o não controlado. O máximo que você pode fazer é dialogar com princípios e valores do repertório que a sua cultura oferece, mas agindo diante do dilema, compreendendo-o como um desafio de natureza também estética, além de cognitiva. Estética porque você vai ter que definir o objeto e as condições de sua apreensão. Elas não estão dadas, assim como se faz no exercício da linguagem criativa. Então, a hesitação é positiva. Tempos atrás, escrevi um ensaio no qual faço um elogio moral à ambiguidade, à hesitação. Não àquela hesitação da dúvida metódica. Elogio à hesitação, ponto, sem síntese, que não se resolve.
RB – Hamlet, e não Descartes...
LES – Exato. A vida segue e, no caso da ética, o indecidível é trágico porque tem que ser decidido de modo injustificável, permanecendo como contradição, e a decisão sempre implica transgressão de valores, perdas. O que podemos fazer é nos esforçarmos para reduzir danos e lidar com isso sem uma falsa ansiedade – que provém da pressuposição de que podemos resolver os impasses. Essa visão, que devo a Kolakovski e a Isaiah Berlin, recusa a unidade platônica do Bom, do Belo e do Verdadeiro. Vivemos no infundado, e talvez seja a hesitação que constitua de fato o que há de ético no juízo ético. É a noite insone de quem se dobra em torno do dilema que constitui a dimensão ética, humana. A decisão, depois, é uma intervenção na prática, porque ela exige do sujeito, inevitavelmente falho e limitado, e o interpela. Reconhecer essa precariedade em si e nos outros é criar um campo moral dialógico.
RB – Na parte final de Elite da Tropa 2, há um longo diálogo no qual o deputado inspirado em Marcelo Freixo expressa seu dilema moral frente à ação violenta do policial narrador da primeira parte de Elite da Tropa 1, e mesmo em relação ao orgulho que ele sente de suas ações. No filme, há algo dessa hesitação no depoimento final de Nascimento à CPI, quando ele diz que a polícia do Rio precisa acabar: “eu não sei responder ao meu filho sobre por que mato. Perdi a possibilidade de justificar os meus atos”. São formas dramáticas de expressar essa visão filosófica da moral como abertura para a angústia da incerteza?
LES – De fato, tem tudo a ver. Acredito que abrir esse espaço de incerteza seja fundamental para encontrarmos novos caminhos como sociedade.